O avanço tecnológico tem redefinido as fronteiras do trabalho em todo o mundo, e o Brasil não é exceção. O desenvolvimento da inteligência artificial (IA), inclusive, tem gerado projeções alarmantes entre especialistas voltados à inovação, que preveem a dissolução de certos postos de trabalho em um futuro próximo, especialmente em funções mecânicas.
A vice-diretora do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora de robótica e inteligência artificial, Esther Colombini, afirmou não saber quais profissões continuarão existindo nos próximos cinco anos ou se estas, por outro lado, passarão a funcionar de uma forma completamente diferente do que é visto hoje em dia.
Tais funções deverão se tornar cada vez mais “sêniores”, isto é, irão requerer um certo nível de complexidade e habilidades avançadas, porque “tudo que é mais repetitivo e de menor valor agregado a IA vai conseguir fazer”, na visão do diretor de tecnologia da informação e co-fundador da plataforma de inovação Distrito, Gustavo Araújo.
Trabalhos em call centers e serviços nas áreas de administração, de faturamento e de recursos humanos (RH) são alguns dos afetados em potencial no Brasil. “Essas funções são tão operacionais que muitas empresas preferem terceirizá-las. Este mercado acabou. Todas essas atividades já estão sendo substituídas por IA”, detalhou Gustavo.
O diretor de marketing B2B – entre empresas – da companhia de telecomunicação Vivo, Gabriel Domingos, explicou que já existem casos de IA trabalhando em áreas de call centers e marketing em instituições estrangeiras, e a ideia é trazer isso para o Brasil. “Acredito que daqui a três ou quatro anos será super factível. A tecnologia está evoluindo muito rápido.”
“Mas tem que tomar cuidado, porque tem casos em que a inteligência artificial, o agente, na hora de recomendar um produto para o cliente, recomendou o da concorrência. Então, transferir 100% um agente de marketing ou de vendas para a IA ainda pode se tornar oneroso para a empresa. Você tem que ir fazendo doses homeopáticas, aos poucos”, disse Gabriel.
No Ceará, os postos de trabalho em call centers têm grande impacto no contexto econômico, sendo responsáveis por milhares de empregos. O Governo do Estado, inclusive, assinou um memorando de entendimento, em 2023, com uma das maiores líderes do ramo no País, a AeC Contact Center, com investimento de R$ 25 milhões em Juazeiro do Norte.
Há necessidade de qualificação profissional para se adequar à conjuntura, mas o acesso à conectividade e a recursos tecnológicos pode ser restrito, principalmente para as pessoas de baixa renda, que acabariam sendo as mais afetadas pelo contexto, pois parte significativa não dispõe de recursos financeiros para arcar com custos de internet.
É o que explicou o presidente-executivo da Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecomunicações Competitivas (Telcomp), Luiz Henrique Barbosa. “Quando falamos de inclusão social, precisamos entender que ela começa com a inclusão digital. E, se a pessoa não acessa a internet, ela não acessa o mundo hoje.”
O secretário do Trabalho do Estado do Ceará (SET) em exercício, Renan Ridley, explicou que o Ceará já está atento a esse novo mercado. Ele e os demais especialistas acreditam que outras profissões deverão dar lugar àquelas que, possivelmente, deixarão de existir, usando, inclusive, a IA como uma aliada para otimizar tempo e aumentar a produtividade no trabalho.
Renan destacou, também, que o Estado está inserido em um cenário de aprimoramento educacional e de investimento bom para acompanhar as mudanças, a exemplo do hub de hidrogênio verde (H2V), de data centers, dos cabos submarinos de conectividade e da construção de uma sede do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em Fortaleza.
No dia 7 de outubro, o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), sancionou a “Lei da Inovação” (Nº 335/2024), cujo propósito é estimular o segmento por meio do acesso a incentivos em pesquisa e tecnologia. A medida tem o intuito de fomentar a geração de empregos, o desenvolvimento econômico e a competitividade estadual.
O Governo do Ceará retomou, em setembro, o Conselho Estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação depois de um hiato de 13 anos. A secretária da Ciência, Tecnologia e Educação Superior (Secitece) e vice-presidente do Conselho, Sandra Monteiro, esclareceu que a pausa anterior foi ocasionada pela falta de convocações de antigos governos.
Isso porque a figura do governador é responsável por presidir e convocar o Conselho. Depois do “chamamento” do governador Elmano de Freitas (PT), Sandra disse que a entidade tem buscado impulsionar o desenvolvimento científico e tecnológico no Estado. “Foi uma excelente oportunidade para debatermos políticas públicas para o setor, com o compromisso de encontros regulares.”
A Secitece entende que o cenário de avanço da inteligência artificial (IA) pode ser uma oportunidade para a formação de capital humano, já que a inserção de tal tecnologia é inevitável. Todavia, o desafio é garantir requalificação dos profissionais, a fim de que eles atuem em funções estratégicas e de inteligência híbrida – humanos e IA –, segundo Sandra.
A secretária reforçou que o papel do governo estadual, assim, tem sido o de promover políticas públicas para garantir uma transição justa e inclusiva no novo mercado de trabalho, investindo em capacitação e educação tecnológica. “Nosso trabalho é também garantir que essas oportunidades cheguem a todas as regiões do Estado.”
Futurecom
Os temas foram abordados no Futurecom 2024, um dos maiores eventos de conteúdo e relacionamento sobre o universo de tecnologia e conectividade da América Latina, realizado entre os dias 8 a 10 de outubro, em São Paulo.
BNDES intensifica apoio à inovação e digitalização em nova fase de incentivo
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) tem olhado com muita atenção não só para a inteligência artificial (IA), mas para a inovação como um todo no Brasil. Não tem sido diferente no Ceará, onde a instituição aprovou financiamentos de R$ 10 milhões no ano de 2023 até julho de 2024, na área de inovação.
"Desde o ano passado, com a nova gestão do banco, a gente retomou com muita força a agenda da indústria… o apoio à indústria, à inovação tecnológica e à digitalização", incluindo um custo incentivado no Programa Mais Inovação, explicou o superintendente da área de desenvolvimento produtivo e inovação do BNDES, João Pieroni.
O suporte do banco passa desde o financiamento direto até o indireto, compatíveis com a Nova Política Industrial, como o desenvolvimento de plantas pioneiras, difusão tecnológica, digitalização de indústrias e parques tecnológicos, além da compra de equipamentos com tecnologias inovadoras e contratação de serviços tecnológicos.
As micro, pequenas e médias empresas também podem se beneficiar na aquisição de bens de capital na denominada Indústria 4.0, como máquinas e equipamentos, além de serviços voltados à internet das coisas (IOT, em inglês) - interconexão de dispositivos físicos ao digital - e ao sensoriamento, o qual viabiliza a coleta de dados.
No caso da conectividade, o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicação (Fust) é o principal instrumento de financiamento do BNDES, englobando investimentos para a expansão ou melhoria da qualidade das redes e serviços do setor, com condições especiais para escolas públicas, unidades de saúde, periferias e áreas rurais.
"Desde meados de 2023 até agora, o BNDES já financiou quase R$ 800 milhões em quatro mil quilômetros de fibra óptica por meio do Fust. Em Fortaleza, aprovamos um grande projeto para a Brisanet (no valor de R$ 146,1 milhões, em maio de 2024), que tem um objetivo social claro, conectando as periferias e a Região Metropolitana", detalhou João.
João informou que o presidente do BNDES, Aloizio Mercadante, tem colocado a conectividade no mesmo patamar do Programa Luz Para Todos, o qual visa democratizar o acesso à energia elétrica pelo Brasil. Neste caso, o foco seria a conexão ao mundo virtual. "A conectividade é vista pelo BNDES como a porta de acesso para todos os serviços digitais."
Questionado sobre possíveis impactos no mercado de trabalho, o superintendente destacou que a geração de empregos é crucial para o BNDES e que, até o momento, todos os projetos apoiados pelo banco na área de IA resultaram na ampliação de postos, não em redução. Todavia, prevê uma migração de funções para àquelas de maior valor agregado.
O gestor ressaltou, ainda, que o Ceará tem uma boa oportunidade no que tange à conectividade devido a data centers e ao Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp). "Como o Ceará tem uma vantagem de energia limpa, uma vantagem de infraestrutura, ele pode sim ser beneficiado" com um conjunto de serviços tecnológicos associados.
Gêmeos digitais podem ajudar H2V no CE, diz especialista
Os gêmeos digitais, representações de algo físico no ambiente virtual, devem ser tendência em 2025 e podem ajudar na implementação de fábricas de hidrogênio verde (H2V) no Ceará, segundo avalia a professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e membro do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE), Cristiane Pimentel.
A implantação das energias renováveis já vem sendo aperfeiçoada com a tecnologia, com a simulação de ambientes para a verificação das melhores posições de equipamentos, do vento e da luz solar. No caso do H2V, será possível analisar qual a disposição adequada para maximizar a produção a um custo mais baixo no Estado, conforme Cristiane.
Além desta primeira fase de estudos no ambiente virtual, a especialista diz que é possível ter um monitoramento contínuo das atividades nas indústrias com o apoio de outras tecnologias de inteligência artificial (IA). Entretanto, ainda é difícil estabelecer esta segunda fase devido aos custos elevados, mas a tendência é que isso se pague no longo prazo.
Cristiane vê, ainda, que os gêmeos digitais também trazem benefícios diretos às pessoas, não ficando exclusivos às organizações, a exemplo da economia de energia elétrica dentro dos imóveis com a integração de equipamentos ou nas redes de saúde via otimização de exames, do acesso a medicamentos e do tempo de espera para atendimentos.
"Estamos nos referindo a tecnologias que visam melhorar processos industriais e operações diárias, tornando a vida das pessoas mais fácil. Precisamos enxergar essa indústria 4.0 como uma oportunidade de aproveitar os benefícios", acrescentou a pesquisadora do grupo de robótica, controle e processos minerais do Instituto Tecnológico Vale (ITV), Rosa Correa.
Já o pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e membro do IEEE, Euclides Chuma, enxerga uma oportunidade com a inteligência artificial para o aperfeiçoamento da atuação brasileira em desastres naturais por meio de veículos autônomos. Uma tendência tecnológica que deve crescer no próximo ano.
"Em incêndios, um helicóptero exige o trabalho de bombeiros em um voo perigoso, uma vez que a densidade do ar onde ocorre a queimada é menor, aumentando o risco para os profissionais. Nesse contexto, um drone adaptado à situação seria ideal, pois pode operar dia e noite sem colocar vidas humanas em risco", pontuou Euclides.
Euclides está otimista, também, para a disseminação de carros voadores em um futuro próximo - conhecidos como eVTOLs - e diz que, embora sejam inicialmente caros, a tecnologia deve baratear com o tempo, assim como ocorreu com as linhas telefônicas e até com os celulares smartphones. "A demanda, evolução das baterias e motores contribuirão para isso."
A China é o país mais desenvolvido em termos de veículos autônomos voadores, mas o Brasil e o próprio Ceará têm avançado também. No Estado, o modelo eVTOL Genesis X1, da startup Vertical Connect, está em fase inicial e dispõe de um preço médio estimado em R$ 2,1 milhões, com investimentos de R$ 100 milhões dos sócio-fundadores.
De acordo com o gerente-executivo do centro de competência xGMobile, Henry Rodrigues, os carros autônomos exigem uma comunicação muito eficiente e confiável tanto entre os veículos quanto entre as infraestruturas. "A infraestrutura da rede 6G será utilizada para rodar esses algoritmos e auxiliar na operação dos carros autônomos."
O desafio, no entanto, é padronizar o 6G para viabilizar o cenário com segurança, conforme o presidente-executivo da Associação Brasileira das Prestadoras de Serviços de Telecomunicações Competitivas (Telcomp), Luiz Henrique Barbosa. "Não dá para correr o risco de um ataque hacker em que o carro vira uma arma em cima da nossa cabeça."
"Agora o que vai ser mais difícil não é nem desenvolver a tecnologia, mas criar uma harmonia, uma confiança de diversos atores para contribuírem e trabalharem em um padrão comum, em um sistema de confiança. Costurar isso é muito mais difícil hoje do que o próprio desenvolvimento da tecnologia", na visão de Luiz Henrique.
ChatGPT e o risco do apagamento cultural com avanço da IA generativa
Os modelos de inteligência artificial generativa (IA generativa), como o ChatGPT, podem alavancar apagamentos culturais, principalmente no que tange às linguagens, avaliou a vice-diretora do Instituto de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Esther Colombini.
"Se você tem, por exemplo, uma massa de dados gigantesca em inglês. (...) Isso gera indícios de que esses modelos respondem muito melhor e com muito mais qualidade quando se trata de traços da cultura majoritária com a qual foram treinados", explicou.
"Assim, se você pesquisa uma pessoa e o nome dela não aparece no Google (mecanismo de busca), é como se ela não existisse. Agora, imagina com esses modelos de linguagem, que podem dar opiniões sobre livros ou sobre a história da humanidade? Podemos realmente ter um apagamento das culturas e das línguas minoritárias", acrescentou.
Esther citou, ainda, que o português não é uma língua minoritária no mundo, mas é muito menos presente do que o inglês, o que geraria perdas significativas na qualidade do uso de modelos de IA generativa, em especial se for necessário escrever algo de conjuntura local.
Questões éticas e morais também são um ponto de atenção, na visão de Esther. Na educação, por exemplo, a diversidade se perderá caso todos usem o ChatGPT para pesquisa e escrita de trabalhos acadêmicos, além de eventuais plágios, pois o estilo da tecnologia é semelhante.
Outro ponto levantado pela pesquisadora está relacionado diretamente à cibersegurança, já que os robôs precisam ser capazes de demonstrar empatia. Apesar de não possuírem sentimentos, eles necessitam identificar e reagir de acordo com o estado de espírito das pessoas.
"O grande desafio é, e eu corro o risco de usar esse termo, humanizar os robôs, no sentido de que eles sejam capazes de entender os estados emocionais humanos e, para isso, precisam se espelhar em nosso comportamento para saber como responder de forma adequada", informou.
No Brasil, um projeto de lei (Nº 759/23) visa regulamentar sistemas de IA e determinar que o Poder Executivo defina uma Política Nacional de Inteligência Artificial. O texto está, atualmente, aguardando parecer do relator na Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação (CCTI), na Câmara dos Deputados. (Com Agência Câmara de Notícias)