Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Como é o nome da senhora? Luíza da Silva Rodrigues Fernandes, tenho 59 anos... Sou avó dele... E por que a senhora diz que era mãe dele? Porque ele tinha três mães. Um menino que tem três mães não pode ser ruim nem possuir um revólver. O senhor não acha?
Ele tinha três mães porque queria bem as três. A mãe de verdade, a mim e uma tia. Eu criei logo que ele nasceu. A mãe dele morava comigo. Quando ela se casou, o Mizael foi com ela, mas nunca abandonei ele.
Onde ele tava, eu tava. Eu morava no Triângulo, na sede de Chorozinho. Mas ele nunca gostou de Cidade, gostava do mato. Ele quis ir embora para a casa da mãe dele, no Salgado. Um distrito onde a castanha de caju é a moeda. Abandonei a minha casa e vim morar mais ele.
Aí, quando houve esse problema da escola parar, por causa do vírus, ele foi para a casa desse tio, o tio Cosmo e Bernardo. Uns tios que ele tinha mais bem querer por eles do que pelo próprio pai dele. E fui embora com ele, embora para Lagoa Nova no município de Barreira.
Ele era assim, uma criatura muito amável. Ele nunca me deu um trabalho de nada. Eu ia receber o bolsa família e nunca me pediu nada. Nunca disse nem "vó, compra um bombom pra mim". Não. O que eu desse a ele, ele recebia e agradecia.
"Como é que a gente tira da foto quem a gente tem saudade e não vai abraçar mais?"
Nunca recebi uma reclamação do colégio, só boas notícias dele. Ele foi uma "pessoa incrive". Eu sou crente, mas sempre dizia: "Leidiane, nós não cria o Mizael". E ela respondia: "A mãe já está conversando besteira".
Eu dizia "cria não, porque o Mizael é um menino muito santo". Ela, minha filha e mãe dele, tinha raiva quando eu dizia isso. É porque já doía no meu peito tanto a alegria dele viver aqui, mas tinha uma despedida que não sabia. Já tinha saudade, mesmo ele vivo.
Leidiane teve um filhozinho, antes do Mizael, que morreu também. Na hora que ela chegou do hospital, eu disse: "Leidiane, esse seu fi é lindo, mas ele é de Deus. Esse fi não vai ser seu". Ele disse a "mãe já tem essas coisas". Com três meses, Deus levou.
O Mizael começou a crescer, tava um rapaz. Tava tão lindo, eu abraçava, beijava. E ele dizia que eu era uma vó besta. Eu ficava comigo, "Mizael não vai ser criado, Mizael não vai em frente. Deus tocava no meu coração. Mizael não era pra ficar com nós, era um tempo, uma passagem".
Ele fez isso com o meu fi e faz com um de vocês. Faz com um pai de família, uma mãe de família. Eles faz
Meu fi, todos nós queria ele aqui! Eu tinha abandonado minha casa porque queria ficar perto dele. Levei ele para o Triângulo porque ele é muito branco e apareceu uma alergia nos entre pernas deles. E ele não tinha vergonha de dizer as tias, de baixar o calção. "Vixe, meu fi, tá muito feio isso aqui. Vamos fazer uma consulta".
Eu recebi o dinheiro da castanha e levei o Mizael pra a Cidade. Castanha? Descasco castanha e recebo um real por quilo despelado. Agora, tô com um remorso de ter levado o menino para os policiais matarem. Chora...
Ele não queria ir, mas precisava e uma filha minha que resolve tudo levou ele para o hospital. Só que o doutor passou três benzetacil. "Vixe". Disse a ele, "e agora, Mizael? Tem de ser mais dias porque não pode tomar tudo de uma vez". Ele aceitou, mas com a promessa de quando tomasse a última, tornaria pros bichos dele.
Por que os policiais fizeram isso com ele? Dizem que eles andavam atrás de um louro e parecia com o "meu fi". Mas não eram pra ter feito isso. Chora. Era pra ter acordado meu fi. Ter olhado. Dizem que esse louro tinha tatuagem. Meu fi não tinha... Por que não olharam?
Chora... Tá aqui, agora só na fotografia. Nesse dia foi apresentado na Assembleia de Deus que a outra vozinha deu o terreno pra construir. Como é que a gente tira da foto quem a gente tem saudade e não vai abraçar mais?
Eles mentem porque não querem perder a farda, eles querem dar uma de garanhão. E eu só digo que existe Deus se eles ficar sem a farda. Imagine eles soltos! Ele fez isso com o meu fi e faz com um de vocês. Faz com um pai de família, uma mãe de família. Eles faz.
Minha filha ainda disse pra eles (os policiais) que tinha uma criança dormindo e eles empurraram ela, empurram pra fora o marido dela e meu irmão. Quando deram fé, foi o tiro. Jamais, jamais, jamais imaginaria que ele ia embora assim. Não se envolvia com nada que era ruim, como é que eu ia pensar nesse fim?
"Eu só quero vingança, mas assim, sem morte. Que esses policiais paguem pelo que fizerem"
Eu pensava nele adoecer numa doença qualquer, nessa tal dessa doença que tá andando por aí e levando os outros. Mas foi desse jeito, nada podemos fazer. Só Deus. Deus sabe o que toda a família tá passando.
Pra mim eu não tenho mais vida, não tenho mais eu por aqui. Não posso tá chorando direto porque sou operada do coração. Mas como é que faz? Criei quatro filhos em churrascaria sendo cozinheira, mas negaram minha aposentadoria. Recebia o auxílio dele, o bolsa família.
Perdi a pessoa que eu mais amava na vida. Quem eu mais amava, foi meu fi. Tá aí os coleguinhas dele pra contar quem era o Mizael. Não tinha arma, nunca, nunca teve arma, não tinha arma.
Eu só quero vingança, mas assim, sem morte. Que esses policiais paguem pelo que fizerem. Quantos que fazem e acontecem e meu fi nunca fez nada de ruim. Até medo de policial ele tinha. Visse uma viatura era assustado.
Se eu pudesse, ressuscitaria Mizael Fernandes da Silva, adolescente de 13 anos interrompido por policiais militares num começo de julho que não sairá do juízo de dona Luísa da Silva Rodrigues Fernandes. "Uma saudade que dói latejante de um filho que já se foi...".
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