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A Casa Aparelho de Fátima
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

A Casa Aparelho de Fátima

Tipo Crônica
1810demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1810demitri

Caro jornalista,

Escrevo porque li você remexendo na memória de cearenses que desapareceram ou morreram torturados nas mãos da ditadura militar/empresarial de 64 a 85...

José Montenegro de Lima, David Capistrano da Costa, Custódio Saraiva Neto, Antônio Theodoro de Castro, Jana Moroni Barroso, Bergson Gurjão Farias, José Mendes de Sá Roriz, Raimundo Nonato Paz, Antônio Bem Cardoso, Frei Tito de Alencar, Pedro Jerônimo de Sousa, José Nobre Parente.

Pois bem, aqui quem vos fala é a casa de meu pai. Um antigo esconderijo da resistência desse tempo inominável.

Meu pai - Zé da Argentina - era torcedor do Ferroviário, do velho Tubarão da Barra, pois era o time dos operários. Além desta herança, herdamos o gosto pela política militante comunista, pela cultura brasileira e as casas de paredes brancas e portas azuis.

A casa onde morei, desde o meu nascimento até o meu casamento, foi construída e reconstruída. Ela é o resultado do esforço de três gerações de família.

Meu avô materno mandou fazer tijolos especiais para a construção. Meus pais a fizeram nascer do chão e nós conseguimos reformá-la e fazê-la crescer para o alto.

A casa não era só o aconchego da família, não. Era o abrigo de tantas pessoas que lutaram e caíram durante o assombro da ditadura de 1964-1985. Sim, nossa casa era um Aparelho.

Nasci em 1971, época em que a ditadura torturava e matava com uma fome de Leviatã os seus opositores. E até aqueles que, simplesmente, eles arbitravam inimigos e, perversamente, perseguiam.  

A casa existia desde 1966 e, por isso, nasceu para ser um local de exílio clandestino da militância de esquerda. Por aqui foram acolhidos muitos companheiros e até uma família inteira. Vinham e eram recebidos como heróis de uma dolorosa guerra desigual.

Durante o período de rearticulação do PCdoB do País, a casa era um ponto de encontro, articulação e vivência cultural. Os camaradas e as camaradas  deveriam ligar e falar a senha: "A Neyla vai chegar".

A frase foi escolhida por meu pai, pois minha mãe estava grávida de minha irmã Neyla, a primeira filha. A nossa casa era o endereço seguro para que as famílias dos militantes clandestinos pudessem enviar e receber cartas de seus parentes.

Em 1972, houve uma reunião do PCdoB aqui em casa. Participaram apenas três pessoas, meu pai e mais dois camaradas. A casa era segura, papai era engenheiro e geólogo, trabalhava com engenharia rodoviária e pertencia a uma família de políticos tradicionais.

Andou por todo o território nacional examinando seu solo e subsolo para construir as estradas e pontes para o Brasil. Encantado com o chão, papai vivia a trazer pedras para mamãe, dona Argentina Meneses.

Cada pedra era uma lembrança para ela. Ele catava para mamãe tudo que via de mais bonito pelo caminho. Por isso, cresci entre as pedras do Brasil espalhadas pela casa e objetos indígenas que papai ganhava ou comprava dos índios e mateiros.

Em 1977, no dia 10 de dezembro, quando voltávamos de um final de semana da casa de praia, notamos que algo errado havia acontecido em nossa casa. Mamãe não conseguia abrir a porta, pois estava fechada por dentro a ferrolhos. E as luzes internas estavam acesas.

Não era coisa de ladrão. Foi preciso arrombá-la para entrar. Primeiro, minha mãe entrou com minha irmã mais velha. Papai estava viajando e a casa estava despedaçada. Tudo no chão. Os livros, as pedras, as roupas íntimas e nossas bonecas decapitadas...

O mais preocupante foi a forma como deixaram o quarto de meus pais. Além do destroço, estavam cuidadosamente expostos na cama do casal jóias de família, cheques em branco assinados por meu pai, documentos importantes e um maço gordo de dólares.

Nada havia sido roubado, mas tudo estava fora da ordem. Outra coisa estranha foi o guarda-roupa do meu pai estar totalmente vazio. De gavetas fechadas, mas de portas abertas.

As roupas de meu pai não estavam jogadas no chão como as nossas, elas haviam sido cuidadosamente guardadas em sua mala preta, como se ele fosse viajar...

Além desta invasão, também foram à casa na praia. Não roubavam nada, apenas reviravam tudo de ponta-cabeça. Numa destas investidas, chegaram a deixar um bilhete: "Esta casa não é boa para roubá".

Os anos seguintes foram de uma vida vigiada. Nosso telefone era grampeado. Ouvíamos a respiração de alguém do outro lado, mesmo sem estarmos falando com alguma pessoa.

E um carro parado na rua, em frente aqui em casa, sempre com dois homens não sai de minha memória. Quando saía a pé com mamãe ela orientava: "Ande normalmente e não olhe para trás, faça de conta que não os vê".

Na época, papai foi aconselhado a se exilar com a família, mas fomos ficando. Os tempos ficaram mais sombrios. Eu desenvolvi pânico. Passei a ter desmaios e a sofrer fobia do desaparecimento.

Tinha pesadelos e crises de ansiedade com medo de meus pais sumirem. Corria ao quarto deles à noite. Imaginava-os sendo colocados numa Kombi e carregados para nunca mais vê-los...

Perdão pela carta tão longa, mas era só para dizer que alguns dos desaparecidos, provável, passaram lá por casa.

Sem mais para o momento, Ecila Moreira de Meneses.

 

Foto do Demitri Túlio

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