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O fim do mar
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

O fim do mar

Traficantes de cantos dos pássaros e das cores das aves, da possibilidade da mata se pintar e cantar, poderiam ser sentenciados também pela extinção das sonoridades e das aquarelas aladas na floresta
Tipo Crônica
04 05 demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 04 05 demitri

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Fosse um promotor de Justiça ou um juiz não daria trégua a traficantes de pássaros e de outros seres vivos. Nenhuma possibilidade de ter atenuado o castigo por capturar, engaiolar, escravizar e vender feito coisa outro ser.

Denúncia e sentença seguiriam, óbvio, na batida (branda) da lei para esse crime recorrente. Sim, claro, mas não dispensaria agravar a pena pela interrupção dos ciclos da vida na Terra, que pedem também passarinhos.

Por ter comprado ninhos de papagaios no Parambu, antes mesmo dos psitacídeos entrarem no tempo da postura e dos filhotes rebentarem, a punição não seria um afago.

É esquisito o "bicho" homem! Pune com severidade quem rapta, quem sequestra, quem "estupra" seus filhos e filhas, como deve ser, mas relativiza a dor da perda de outras espécies violadas. Também são pais.

Por que não produziria frustração semelhante a violência parelha de roubar recém-nascidos numa maternidade e, igualmente, sumir com ninhadas numa floresta?

O traficante de animais, geralmente um reincidente descarado, ri da Justiça que o "abraça" na maioria das vezes.

 

"Traficantes deveriam responder pelo sumiço dos cantos. Por que promotores e juízes não levam em conta desaparecimento de mais cantigas na Caatinga, na Mata Atlântica, no Cerrado?"

 

Acompanhei, anonimamente, um criminoso ambiental durante dois anos. Era parte da apuração de uma reportagem para O POVO.

Na feira livre do bairro de Fátima, o vendedor de "caixas de papagaios" fazia piada de uma sentença que o "premiou" pelo dano de décadas ao Planeta.

Por ser um "velhinho", cristão evangélico, e mesmo sendo contumaz, o traficante foi sentenciado a doar uma saca de feijão a uma escola pública de Fortaleza.

Ele o fez. Comprou o feijão "mais ordinário", "cheio de gorgulhos", doou, se achou ainda mais esperto, contou para os seus e ainda continua vendendo berçários de filhotes de papagaios-verdadeiros.

Um traficante de animais poderia ser punido, também, pela sucessão de ausências causadas por cada bicho interrompido na mata. Uma sentença eivada de ínfimos faltantes e as consequências pela indelicadeza com a outra espécie.

A brutalidade da mata ter perdido com a surrupiada do filhote de papagaio-verdadeiro a possibilidade de mais amarelo, mais azul-esverdeado, vermelhos, extremos azuis-escuros. O verde, o amarelo-laranja, vermelho-laranja, o negro do bico e patas.

Traficantes deveriam responder pelo sumiço dos cantos. Por que promotores e juízes não levam em conta desaparecimento de mais cantigas na Caatinga, na Mata Atlântica, no Cerrado?

 

"Parece exagero, devaneio de alucinado. É não, pensa assim quem padece do antropocentrismo e perpetua a mentalidade de gaiola"

 

Vai fazer falta o canto de um Uirapuru que foi covardemente capturado na Amazônia. A conta deveria ser feito assim: são dez galos-campinas apreendidos com o traficante e mais dez "cantos" desaparecidos no Semiárido.

Sumir com uma anta sementeira é extinguir jardineiras da mata. Então, o criminoso ambiental responderia também pelas árvores que deixaram de nascer das fezes desses bichos e toda a sucessão faltante. Porque não teve fruto nem semente nem fotossíntese.

Parece exagero, devaneio de alucinado. É não, pensa assim quem padece do antropocentrismo e perpetua a mentalidade de gaiola.

Daqui um tempo, quase certeza, nem mar a Cidade terá. Um infinito de plástico e criminosos traficando outras extinções.

 

Foto do Demitri Túlio

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