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O fim do breu
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

O fim do breu

Alexa trouxe a peste da insônia e as telas. Transformou Macondo numa fortaleza fosforescente
Tipo Crônica
2409demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2409demitri

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Os pássaros estão ansiosos. Com alguns distúrbios emocionais e carentes de hemifumarato de quetiapina. Diagnose de depressão e só não viraram clientes das esquinas de farmácias porque não nasceram consumidores nem têm pix.

É uma não-ficção o que escrevo com cara de crônica. Um atormento causado por tanta luz e o aperreio no juízo numa Cidade que não se apaga nunca mais. As aves estão inquietas, precisando de melatonina e do tempo do escuro.

Uma amiga, moradora do Benfica, fez-me um favor. Por ela ter noites intermináveis de insônias, pedi que transformasse o desassossego numa observação para uma pesquisa que ando a fazer. Porque também não pego no sono.

Os olhos dela nem bocejam mais. Talvez sejamos outro naipe de ser vivo diferente das bisavós do Maranguape e da Aratuba, se recolhiam com as galinhas. No Camocim também era assim e Porangabuçu aussi.

"Era algum submundo meu e fiquei assustado, repentino, com o nervosismo de periquitos noite adentro. Não é comum voarem e vocalizarem naquela hora em que já deveriam estar empoleirados"

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Às 18 horas se servia uma jantinha, sopa com as sobras do almoço ou chá de capim santo e bolacha água e sal. Tinham os que preferiam comida de panela, mas também se recolhiam cedinho da noite.

O que me amedrontou? Eu ouvi uma revoada estridente de periquitos-do-encontro-amarelo às 8 da noite. Estava nas proximidades do mangueiral iluminado da reitoria da Universidade Federal do Ceará.

Tenho a impressão de que me ariei naquele dia e fui parar no Benfica à procura de alguém. Não sei se havia marcado alguma conversa com a jornalista e amiga Ana Mary C. Cavalcante ou se tinha um encontro com o general que me amava.

Era algum submundo meu e fiquei assustado, repentino, com o nervosismo de periquitos noite adentro. Não é comum voarem e vocalizarem naquela hora em que já deveriam estar empoleirados desde às 18 horas.

Poderia ser uma coruja, um cassaco? Talvez, mas as aves diurnas não voam quando se acumulam para dormir. Mesmo em perigo. Cegam à noite, se entregam à quietude, aos sonhos e se tornam com o sol.

"Russas, feito Fortaleza, extinguiu suas noites escuras. E fomos perdendo a natureza de pegar no sono tamanha poluição luminosa"

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Uma estranheza de comportamento de uma espécie que virou abundante em Fortaleza de uns 30 anos para cá. Quando eu era infância, não havia esquadrilhas de periquitos dando rasantes fora dos sertões e serras.

Vi inquietação assim de outros pássaros. Eram os chopins nervosos, em Russas. Por duas vezes, testemunhei bandos se alvoroçarem da meia noite em diante nas carnaúbas de uma praça pública de lanchonetes.

Era madrugada e eles não paravam de voar e gritar com as buzinas, com rapazes idiotas chutando os troncos das árvores. Havia paredões troando e uma abundância de iluminação numa Cidade que não sabe mais o que é o breu.

Russas, feito Fortaleza, extinguiu suas noites escuras. E fomos perdendo a natureza de pegar no sono tamanha poluição luminosa. Além dos dias pesados nas costas e no juízo.

Pessoas 24 horas, farmácias ativas sem cerrar portas, zumbis das telas, excesso de luz, brilho permanente do lume artificial. Luas cheias, mas embaçadas por tantos holofotes e leds. Não avistamos mais estrelas em abundância.

É sorte agora experimentar o silêncio do breu, mesmo com os medos da noite. Era o ciclo natural da luz. O ritmo circadiano, numa jornada de 24 horas, biologicamente nascido no corpo e que está se esvaindo.

Desorientação das aves, voos cegos noturnos, barroadas no reflexo dos vidros e pescoços quebrados.

"Alexia trouxe a peste da insônia e as telas. Inventou o fim do descanso e os periquitos não conseguem que lhes receitem fluoxetina, quetiapina, zolpidem, rivotril..."

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Alexa trouxe a peste da insônia e as telas. Transformou Macondo numa fortaleza fosforescente.

Inventou o fim do descanso e os periquitos não conseguem que lhes receitem fluoxetina, quetiapina, zolpidem, rivotril, ritalina, lamotrigina.

Minha amiga anotou... Sexta, 28/1/2023, às 22 horas. Os periquitos do Benfica estavam cantando e voando perto da Reitoria. Domingo, 29/1, às 00h48min, uma revoada pequena passou cantando perto da igreja dos Remédios...

Quarta-feira, 15/2, às 00h30min. Periquitos voavam e vocalizavam perto da farmácia Santa Branca e do Convento das Irmãs da Misericórdia. Quarta-feira, 15/2, às 00h35min, bando de periquitos continua cantando e voando no Benfica. Escuto.

Quarta, 29/3, 23h22min. Periquitos vocalizam no céu da Reitoria. Estão voando... e a insônia vai me enlouquecer.

 

Foto do Demitri Túlio

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