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Ruínas de 388 anos
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Ruínas de 388 anos

Não há como não ser racista tendo sido fundado em 388 anos de escravização contra 135 de uma "libertação incompleta". Mas há como se mancar, se reprogramar
Tipo Crônica
0511demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0511demitri

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Começo a crônica de hoje, mês de novembro, com uma sugestão para o Carlus Campos - o outro autor desta coluna. Por whatsapp, procuramos combinar qual ilustração poderia ser concebida para a página.

Carlão, bom dia! Seguinte, vou escrever sobre o racismo que ainda persiste no Brasil. Escrotidão que permanece violenta, 135 anos depois da "abolição" do cativeiro de gente negra africana sequestrada para cá, afro-brasileiros nascidos na chibata e indígenas.

Claro que permanece, foram 388 anos de escravização contra 135 anos de "liberdade" incompleta. É um país construído na marra, depois das invasões europeias, fundado na tecnologia da escravização de pretos e indígenas. Daí o racismo insistente.

Nenhuma escola e nenhuma igreja relembram e repensam o que foi criar uma "nação brasileira" com base em quase 400 anos de sequestro de gente negra e o quase extermínio de indígenas.

Preciso repetir, Carlão! Talvez por necessidade pessoal. Foram 388 anos... e milhares de mulheres, crianças, idosos e homens negros desrespeitados como seres vivos, subjugados por brancos bárbaros europeus. Na peia, na senzala, do corte da cana, no boi, no estupro, na venda de corpos, na humilhação de ser categorizado como sub-raça.

"Nunca deixará de ser vexatório para a igreja católica e a cristianização à força. Nem com quatro séculos de pedido de perdão por tanta tortura e assassinato"

 

Um terror luso-católico, espanhol, francês, holandês, austríaco e inglês tão soez quanto o império romano, a bomba atômica, o nazismo de Hitler, a arrogância de Israel contra a Palestina ou qualquer outra torpeza do antropocentrismo.

Quantos navios se encheram carregados de africanos arrancados? Quantas mulheres negras foram estupradas? Quantos mortos sem nomes nunca ouviremos falar? Escombros desses 388 anos de vergonha?

É quase impossível não ser racista em um Brasil com 135 anos de "libertação" contra 388 anos de crimes contra a humanidade não-branca. Nunca deixará de ser vexatório para a igreja católica e a cristianização à força. Nem com quatro séculos de pedido de perdão por tanta tortura e assassinato.

Se seu pai não é racista, provavelmente sua mãe é. Ou, então, dizem que toleram, mas "preto que não caga na entrada, caga na saída". Ouvi muito e ainda escuto.

Quase certeza, quem está lendo a coluna tem um tataravô racista. Uma avó ou um bisavô. Um tio-avô ou um sobrinho-neto...

"Você quer ser uma repórter de tv com esse cabelo de empregada?" Perguntou um ex-editor de jornalismo da Verdes Mares para Cinthia Medeiros por causa do "cabelo ruim". Ela nem sabia que não era "branca pura". Ou parda ou qual racismo foi incutido na infância e na adolescência da moça.

"É ainda a persistência do 'povo desenvolvido' que vem 'civilizar' os bravosos. Até hoje. Ora, ora, ainda batizamos e catequizamos nos mesmos moldes dos 388 anos"

 

Dizem-me, quase sempre, que sou a "cara" do brasileiro "comum", "moreninho simpático", algo menos que a estirpe superior fundante. Um sem berço.

É quase 100% afirmar que quase toda família teve negrinhas no fogão, na vassoura, no varal, na roupa para engomar e a criar rebentos alheios. Lá em casa teve. Pobres em ascensão que tinham negras servindo aos patrões e patroas.

Quem não trouxe do Interior, dos sertões, de alguma favela, "negrinhas novas" que mal se sustentavam na infância para pajear os filhotes brancos dos outros? Mucamas. Lá em casa teve, e pior, para os meus filhos nos anos 1990 e 2000.

Não há como não ser racista tendo sido fundado em 388 anos de escravização contra 135 de "libertação". Mas há como se mancar, se reprogramar, deixar de ser escroto e ter cotidianos antirracistas.

É ainda a persistência do "povo desenvolvido" que vem "civilizar" os bravosos. Até hoje. Ora, ora, ainda batizamos e catequizamos nos mesmos moldes dos 388 anos.

Certeza, alguém da família é racista ou disfarçou até Bolsonaro surgir. Alguém do prédio é racista, algum médico, algum professor... seu avô, seu tataravô, seu tio-avô, seu pai, sua mãe, seu irmão...

 

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