Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
O dia seguinte que nunca chegou foi o 2 de janeiro de 1883, em Acarape... Foi o 26 de março de 1884 no Ceará todinho. Foi o 14 de maio de 1888 após uma princesa luso-católica-brasileira passar pra história. E os "neguinhos" e as "negas"?
Quem sabe ali, naquelas levas de pretos sem rumo, tinha alguém da minha família lá nas origens e nunca vou saber que destino foi. Talvez, o dia seguinte dure até hoje? Perdura e ainda não se fez do jeito que deveria ter sido e jamais se desmancharam os privilégios.
Imagino a liberdade no dia seguinte, um mês depois, 135 anos hoje e carregar na pele os 388 anos do cativeiro. Quantos morreram loucos? Quantas foram estupradas novamente? Quantos arriscaram voltar a nado?
Cresci ouvindo lá em casa, na escola, na igreja, na rua, na família grande de tios, de avós e das bisavós - brancas dos olhos claros e pardos misturados - que aqui existia um povo somente parido.
É por isso que depois, somente muito tempo depois, é que fui desconfiar do "quartinho de empregada" e a cabeça anosa de arquitetos, de engenheiros e de construtores. E à noite, quando a residência pegava no sono, um branco (bisavô, avô, pai, tio, filho, neto) violava uma cativa.
"Quem inventou a fome não foi Carolina de Jesus, foram os que comem. Quem inventou a ira das patroas foi Dilma Rousseff. Imaginar uma "empregadinha" cheia de direitos 388 anos depois?"
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A "dependência" onde se fazia o favor de dormir uma "doméstica" era desenhada na cozinha. Perto da lavanderia, a um passo do fogão, vizinho às vassouras e onde se guardavam a kiboa, o rodo, a vassoura, o pano de chão e o quarador pendurado.
Tinha um banheiro ordinário, uma pia fuenca, um sanitário de louça mais barata e uma luz pendurada no fio. Os quartos das cunhãs - pretinhas vindas de alguma favela ou "trazida" do Semiárido - eram um pouco melhor na casa dos "senhores" e das "patroas" de mais posses.
É mesmo que ser da família! Tem tudo: sabonete, xampu, água, pasta dental, papel higiênico, energia elétrica, comida e leite de rosa para não feder. Era a primeira a se levantar de manhã e ia dormir depois dos "donos".
Quem inventou a fome não foi Carolina de Jesus, foram os que comem. Quem inventou a ira das patroas foi Dilma Rousseff. Imaginar uma "empregadinha" cheia de direitos 388 anos depois?
"Mas o dia seguinte em Acarape? Os 32 negros libertados para celebrar a "bondade" branca cearense foram pra onde? Os 100 e poucos tangidos da fazenda da Douradinha? Qual fim foi feito deles?"
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O dia seguinte de muita gente foi a morte. Foi também Toinha, uma preta que ia lavar e engomar roupa, ela se orgulhava de ter um dente de ouro na boca. Igual minha avó Marieta. A mãe dela, dona Joana Bu Mais Preta, fazia um impagável doce de caju.
É muita eiva nas negas da senzala bodejar contra cotas e eleger o mérito de quem somente viveu privilégios. Fazer assim, tem gente que tem orgulho do nome. Pois duvido que não tenha tido currais de escravizados até 1883, 1884 e 1888.
Na rua, no campinho de futebol, nas esquinas de vadiar os "neguinhos", os "tições", as "neguinhas do pajeú", os meninos e as meninas de cabelos de "bombril" nunca existiram.
Mas o dia seguinte em Acarape? Os 32 negros libertados para celebrar a "bondade" branca cearense foram pra onde? Os 100 e poucos tangidos da fazenda da Douradinha? Qual fim foi feito deles? E as crias, as favelas, os pés sem sapatos, a negra nua sem nome?
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