Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Vou terminar a coluna desejando feliz ano novo, de coração e crendo que a vida sempre merece uma virada para a abundância pessoal e coletiva. Não ganharei na mega da virada, mas o fim do mundo ainda terá tempo.
Enquanto não chego no último parágrafo - porque escrever tem uma espera natural por beija-flores - vou me ancorar num episódio da vida de Cristina dos Santos e Samuel Medeiros. Chegou-me aleatória e a crônica me impôs.
Cristina é mãe de Samuel, de 11 anos, é técnica de enfermagem e mora em Itaitinga - longe mais de 31 km da escola particular Nossa Senhora das Graças, no bairro de Fátima, em Fortaleza. Onde o filho estuda há dois anos.
Foi na véspera da festa de Natal, dia 23 deste dezembro. Um e-mail, disparado pela escola católica informava que o filho, a partir de 2024, perderia 50% da bolsa integral de estudo que o mantém lá desde 2022.
"É assim o desespero de Cristina na virada do ano, quando só há desejos de abundância..."
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Interessei-me pela história, porque eu estava na praça da Imprensa planejando ganhar na Lotofácil da virada e ouvi Cristina pedindo a outra mulher o favor de escrever uma carta suplicando que as irmãs do Nossa Senhora reconsiderassem o corte. Ela disse não saber argumentar.
Cheguei mais perto das duas, fiz de conta que estava lendo algo no celular, e tomei cuidado para não ser confundido com um fauno tarado. Fui ouvindo tudo.
É assim o desespero de Cristina na virada do ano, quando só há desejos de abundância. Samuel terá de sair do Nossa Senhora das Graças. E o curioso, mesmo sendo a Prefeitura de Fortaleza a pagadora da bolsa integral.
Fui checar. Sai o cronista e entra o repórter. Há um convênio legal entre o Município e algumas escolas particulares. A Prefeitura paga uma cota de bolsas de estudos para estudantes de famílias em situação financeira vulnerável.
É o caso do Samuel e de Cristina. Ela sustenta a vida e a do filho com um salário de R$ 1.600 mais uma pensão do ex-marido, de 400 reais. A mensalidade bancada pela Prefeitura de Fortaleza soma R$ 1.728,54 pelo 5º ano do Fundamental.
"Lembrei com carinho do colégio Redentorista, de minha mãe e do finado padre Dermival. Um irlandês que agradecerei sempre o que fez por meus irmãos Nukácia, Breno e Jivago e por mim"
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Não preciso fazer as contas. Cristina disse na praça que não cabe no orçamento de 2024 bancar os R$ 864,27 propostos pelo Nossa Senhora das Graças. Na carta, que a mãe pediu para a outra escrever, ela quer saber por que as irmãs e o prefeito resolveram cortar pela metade o dinheiro público da bolsa?
Samuel poderia ir para uma escola pública? Poderia, mas Cristina vê no Nossa Senhora das Graças um tratamento diferenciado para crianças com TDAH e depressão. E se ele teve direito até agora ao benefício e adaptou-se bem à escola, por que oferecer retrocesso?
Lembrei com carinho do colégio Redentorista, de minha mãe e do finado padre Dermival. Um irlandês que agradecerei sempre o que fez por meus irmãos Nukácia, Breno e Jivago e por mim.
Como meu pai não pagava as mensalidades do Redentorista, todo ano era um constrangimento para a mamãe e pra nós. Sensível, padre Dermival resolveu oferecer bolsa integral e em troca, nós quatro trabalharíamos na escola. E assim foi feito.
"A descontinuação, sem explicação e sem a possibilidade de reconsideração, é um baque nas ilusões comuns de fim ano. É a real"
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Era a mediação possível e uma generosidade do irlandês. Sou jornalista e meus irmãos também foram para a universidade. Parte disso, devo ao encouraçado de minha mãe e ao inesquecível padre Dermival.
Veja, uma escola particular - religiosa ou leiga - é uma empresa como outra qualquer no capitalismo. Não são obrigadas a ter alunos estudando de graça, apenas quando têm interesse na publicidade de concursos.
No caso de Samuel, a criança vinha sendo assistida pelo recurso público da Prefeitura de Fortaleza. A descontinuação, sem explicação e sem a possibilidade de reconsideração, é um baque nas ilusões comuns de fim ano. É a real.
Desejo um 2024 abundante para o Nossa Senhora das Graças, para Cristina e Samuel, para as leitoras e leitores. E não vamos adiar o fim do mundo. Beijos.
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