Logo O POVO+
Guerrilhas ainda do Ceará
Foto de Demitri Túlio
clique para exibir bio do colunista

Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Guerrilhas ainda do Ceará

Tipo Opinião
 (Foto: )
Foto:

Acreditei que, diferente de janeiro deste ano, não teríamos mais ataques das facções criminosas. Um ou outro incidente, vá lá. Porém daquele porte, improvável. Isso, dada a propaganda sobre a "retomada" dos presídios e o retorno da "autoridade" da Coroa.

É verdade, no começo do ano botaram bombas em dois viadutos e os "marginais" foram mais "marrudos". Não deixaram de ser agora, mas ficaram nos incêndios e estão sendo presos mais rapidamente pelas forças de segurança do Estado que se organizaram um pouco mais do começo do ano para cá.

Um atalho... Quando pivete, escutava muito o mantra que tínhamos de "vencer na vida". Em casa, na escola, na vizinhança e no catecismo da igreja davam, de graça, o conselho. E o exemplo de "vencedor" era quase sempre o mesmo.

Dar "certo na vida" era sinônimo de se "estribar". Era quem estava com as burras cheias e lavava a égua. Carrões, casa boa, iam para a Disneylândia (quando era quase impossível "andar de avião") e tinha morada de veraneio nas coqueluches Iparana e Prainha.

Para os lascados da classe média, a receita era conseguir passar numa escola militar - Aman, Epcar, Escola Naval - ou ser um engomadinho do Banco do Brasil, da Caixa, do BNB, do Banco Central ou auditor da Receita Federal.

Os "perdedores", por da mentalidade época, eram os malsucedidos na empreitada do dia a dia. Por isso, fracassados, seus lugares na história do cotidiano era, geralmente, a favela. O inferninho no Pirambu, no Alto do Bode, no Autran Nunes, no Beco dos Pintos, no Oitão Preto, no Farol das quengas...

Lugares de exceção. De português mal falado e "assassinado" na escrita. De pouca roupa para se vestir, de comida escassa, de bocas sem dentes. Da rudeza. De água de cacimba, de quintal, monturo e fossa. De telhado com goteiras... Onde os mais pretos do que eu, na verdade dizem que sou "moreninho" e apenas "nasci com o cabelo ruim", se amontoavam.

Ninguém que fosse melhorzinho do que essa gente "ordinária" aceitava morar perto de favelado. "Gente suspeita". Qualquer roubo de galinha, se houvesse uma favela por perto, a culpa era do povo do "barracal".

Quem não é daquele tempo, não imagina o que foi a Aldeota ter de "tolerar", até hoje, a "favela das Quadras ou do Santa Cecília" e a "favela do Campo do América". Se um elefante incomoda muita gente, imagine a "Graviola", o "Japão", o "Serviluz", "o Vicente Pinzón", o "Dendê"...

Pois bem, voltando para a 2ª temporada da série "Presídios Retomados" este ano, a impressão que tenho é que esta guerrilha "marginal" de 2019 tem mais de 500 séculos. Desceu das caravelas com os "vencedores" e ainda perdura. Só piora e seguimos capturando e matando "perdedores".

Uma peleja atávica entre "triunfantes" e "fracassados". A guerrilha entre o território dos "bem-sucedidos" contra os "assentados precários" da história. São "restos" de indígenas e escravizados contra a "arcaica" geração moderna dos "conquistadores" e sua milícia bandeirante no Siara Grande.

Sim, o anti-herói aqui é o faccionado. E não há como ter simpatia por quem incendeia ônibus, bota bomba em viaduto, degola o inimigo, produz chacina, faz tráfico de drogas e armas, rouba carro, dita leis próprias no território tomado, arregimenta crianças e adolescentes...

Mas também não há como negar que essa massa de excluídos decidiu botar o próprio "negócio" porque também "quer vencer na vida". Porque disseram pra eles que ser bem-sucedido era ser um grande consumidor...

Não há como engolir a história que se é pobre porque se quer. Que, querendo, um dia a favela vai ter tudo que a Aldeota! Depende da "força de vontade".

Que os indígenas e os escravizados pretos, de 1500 e de lá pra cá, foram vítimas de um holocausto porque já nasceram "perdedores". Está longe dessa guerra ter um fim.

Foto do Demitri Túlio

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?