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É hora do almoço
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

É hora do almoço

Tipo Crônica
2912demitri (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos 2912demitri

Alguns dias tenho saudades de ouvir minha mãe gritando na porta que dava para a rua. Esgoelava-se para que fôssemos almoçar. É hora do almoço, menino! E todas as mães do Porangabuçu gritavam iguais.

Lá em casa, mamãe se punha na frente do fogão e um a um, dos seis filhos, ia servindo o que tinha para comer. Se fosse no final do mês, no mínimo, haveria arroz feijão, macarrão e uma mistura além de ovos estrelados ou carne de lata.

Servia a todos não por submissão, papel de mãe ou por ser a dona de casa (uma idiotice daqueles anos). É porque em família de muita gente, de muitas bocas como repetia o indelicado de meu pai, tudo era contado. Se um comesse além da conta, faltaria para o outro.

Mas havia também abundância, não era só o medo da escassez e de sumir. Ficava na cabeceira, era hora do almoço. Minha irmã mais velha, negra e linda cabeleira...

Diante dos pratos, não me lembro de muita tristeza. Poucas. Recordo-me de catar os pedaços de cebola que me faziam enguiar. De cuspir o pimentão verde e tomar carão de minha avó Marieta com a frescura.

Ela ralhava porque não conseguia fazer com que comesse a carne com langanha, aquela gordurinha gasturenta... Tanta gente morrendo de fome! Berrava.

Medo, medo, medo, mesmo, só quando em 77, um daqueles filhos não voltou mais do meio da rua para o almoço. Não foi nenhum dos seis lá de casa, vovó se benzia. Dona Luíza, uma das vizinhas, escuto-a até hoje, de meio dia até perder a voz, a gritar por Teodoro.

É hora do almoço, menino! Entra pra dentro, vem comer. Sai do sol, "tu vai" virar um tição!

Fazia mais de um ano que o filho de dona Luíza não ia almoçar. Moço desaparecido naqueles anos que eu não entendia muito.

Era uma interrogação, que corria a rua, clandestina. Havia medo de se falar sobre o rapaz que o "papa-figo" havia sumido. Teriam retirados os rins.

Teria amanhecido em uma banheira de gelo, sem brilho nos olhos e um corte medonho acima das ancas.

Eram os contos saídos de uma subdelegacia que ficava na descida da Tavares Iracema, esquina com o calçamento da Professor Costa Mendes. Quase toda a rua ia deixar almoço para os guardas. Medo, não era gentileza.

Almoçar e ouvir dona Luíza a gritar por Teodoro dava na fraqueza. Não era assunto para se puxar diante do prato, ao redor da mesa. Mamãe nos calava e a cebola dava vontade de vomitar o silêncio.

Um ano novo após o outro e Teodoro, mais velho do que nós, virou só os gritos de dona Luíza na soleira da porta que dava para a rua. Murinho baixo, cacimba e flores resistentes no pé do poço. Nem o sol sem chuva secava o jardim (de tanta tristeza).

Já éramos grandes, frangos e frangas, e mamãe já não gritava mais na hora do almoço para nos campear a fome. Mas a mãe de Teodoro não desistia e, um dia, foi gritar pelo filho em frente à subdelegacia. Vizinho ao frigorífico que vendia galinha abadita na hora e sangue pra cabidela.

Era 1982, talvez. Digo isso, porque era novamente Copa do Mundo e os guardas quase prenderam dona Luíza na hora do Brasil e Itália. Muita tristeza. Teodoro, Teodoro! É hora do almoço, menino...

Os brutos não prenderam a mãe de Teodoro porque toda a Tavares Iracema foi gritar pelo filho de dona Luíza em frente à subdelegacia. Houve desentendimento, pouca fala, cassetetes, pedradas e um monte de Veraneios assombrando.

Virei pai, formei na UFC, descasei, fui pra terapia, pedi demissão... e dona Luíza, até perto de ir de vez, voltava à porta da rua para gritar por Teodoro. Parece que a vejo e a escuto...

É hora do almoço, menino! Entra pra dentro, é hora do almoço! Moço, moço... Deixa de coisa, cuida da vida. Aparece, menino! Tu ainda é tão moço pra tanta tristeza, se não chega a morte ou coisa parecida... Ou coisa parecida...

(Sugiro a leitura escutando a música A Hora do Almoço, de Belchior. Interpretação de Belchior e Ednardo, do CD Ednardo, Amelinha e Belchior)

Foto do Demitri Túlio

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