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Povos indígenas do Ceará... Presente!
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Povos indígenas do Ceará... Presente!

Tipo Crônica
1503demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1503demitri

Ser chamado de índio lá em casa era um insulto, sinal de "ignorância". Lembro de meu avô Afonso, um homem bom para mim e meus irmãos (quase um pai), xingar minha bisavó Mariana de "índia do Maranguape". Ela era "braba", valente, amável do jeito dela. Como qualquer ser humano.

Quando discutiam, por causa de uma besteira ou arranca-rabo de genro e sogra, a primeira ofensa era lembrar da suposta origem dela. Filha de um português - fugido para não ser convocado para a 1ª Guerra Mundial, com uma índia das matas da Rajada.

A esposa de meu tataravô Manuel Botelho talvez até fosse uma índia. Provável, era uma cabocla. E porque tinha pouca escola e habitava as brenhas de uma floresta, virou indígena dado o preconceito que vinha desde os 1500.

Uma "cripto-índia", assim como os cripto-judeus. Talvez. Gente que foi se escondendo, sendo batizada na marra para evitar ser dizimada. Vovô era branco, olhos claros, neto de portugueses que chegaram pelo porto de Camocim. Provavelmente judeus, mas que meu avô abominava a possibilidade.

Minha bisavó tinha hábitos de almoçar acocorada e comer com as mãos, porém jamais aceitou a história de parentesco indígena. Não era sinal de ser civilizada e, para ela, os índios só existiram até o Brasil ser "descoberto".

Ter parte com o sangue dos índios soava ser selvagem, sem modos, ter preguiça.

Uma "verdade" maldosamente disseminada pelo Estado e uma elite interessada nas terras indígenas. Para meu avô e minha bisavó Mariana, e gerações que rebentaram depois da edição do Relatório Provincial de 1863 da Assembleia Provincial do Ceará, os índios estavam extintos.

A coroa portuguesa já havia decretado, desde a resistência indígena no Ceará às invasões, a morte aos "ignorantes" do Semiárido. O presidente da província, José B.C. Figueiredo Júnior, firmou que parte dos aldeados havia sido dizimada ou teria migrado ou embranquecera.

Pois muito bem. Cento e cinquenta e sete anos depois da construção dessa mentalidade danosa, um projeto de lei do deputado estadual Renato Roseno (Psol) e de lideranças indígenas virou a a Lei 17.165/20. Um século e meio depois, Camilo Santana (PT) desfez o ato genocida de José B.C. Figueiredo Júnior.

Pode ter sido tarde para os povos originais do Ceará violentados durante 500 anos e até hoje. Mas há algo de importante e simbólico na reposição (legal) da existência de quem teve de deixar clandestina a identidade do sol.

"É uma reparação, novo ponto de partida para mudança de mentalidade. Precisa ir à escola"

Hoje são 14 povos indígenas em 18 municípios cearenses. Aproximadamente 26 mil herdeiras de nações silenciadas e de terras griladas com o aval do Estado. Até pouco tempo, os karão de Baturité escondiam as histórias de seus antepassados.

Tinha motivo. Dom Aloísio Lorscheider, na década de 1970, jogou luz sobre a situação precária dos tabebas de Caucaia e O POVO estampou em primeira página a "descoberta de índios no Ceará".

É esquisito precisar de uma lei para dizer que existimos, que não fomos extintos. É uma reparação, novo ponto de partida para mudança de mentalidade. Precisa ir à escola, entrar nas cozinhas.

Meu avô Afonso e minha bisavó Mariana se encantaram sem virar a chave. Quem sabe, ainda descubro qual sangue indígena também dança em meu corpo...

No Ceará, existem os anacés, os gaviões, os jenipapos-Kanindés, os kalabaças, os kanindés, os kariris, os pitaguarys, os potiguaras, os tapebas, os tabajaras, os tapuias-Kariris, os tremembés, os tubibas-tapuias e os tupinambás. Nações sobreviventes das invasões europeias.

 

Foto do Demitri Túlio

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