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O fim do mundo será adiado
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

O fim do mundo será adiado

Tipo Crônica
2203demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2203demitri

Teremos de adiar o fim do mundo mais uma vez. Para quem não morreu em 2017, ano mais violento do Ceará, com 5 mil e tantos assassinatos - quase 14 mortes por dia, a prova do confinamento para ganhar uma vida contra a covid-19 ainda é suportável.

Mas reconheço que esse é o pensamento de quem saiu da periferia, cursou uma universidade pública federal, veio para a Aldeota e mora ao redor de quase todos os serviços básico que se precisa para ir vivendo.

De casa, posso até fazer o tal home office. O computador está aqui, tem internet à disposição e virou até pauta os bacanas mostrando a família margarina-digital trabalhando em casa ao redor de uma linda mesa de vidro ou de madeira rústica e as suculentas como cenário.

Não estou frescando. É apenas uma constatação de que o vírus, provavelmente, será menos letal por aqui do que numa enfieira de casebres construída ao pé da rampa do Jangurussu. Uma ocupação ou assentamento precário onde se escapa da morte quase todos os dias.

Agora, o coronavírus. Quando não é a porcaria da facção é polícia e as abordagens escrotas contra quem já nasceu suspeito. Têm os pés descalços, as moscas, a água parada, a falta de banheiro e o cocô rebolado do penico...

Até a chuva, motivo de festa no Semiárido, é possibilidade de não ter conseguido sobreviver ao temporal nos barracos do Gereba. O marido, os filhos e os bichos de rua e de estimação.

A primeira vez que o fim do mundo foi adiado para mim, deve ter sido nos anos 70. Não sei em qual deles. Foi quando toda criança do Porangabuçu teve medo de morrer de meningite com a nuca dura.

Filas e filas na calçada de uma escola pública na Bela Vista. Não lembro o nome, sei que segurar a frouxidão quando a pistola pinicava o músculo magro do braço direito. Um de nós, menino da vizinhança, teve a meningite. Ninguém passava na calçada e o colchão dele foi queimado.

Noutra vez, meu irmão Glauco, às pressas foi internado no isolamento de um hospital onde hoje funciona o IJF da Parangaba. Tive medo dele, o mais novo dos homens, não voltasse mais. Ainda bem, tornou.

Vivi vários adiamentos do final do mundo. Não me lembro de todos, a minha cabeça dói e dói o corpo com uma febre fria. Em 1992, quando pedi baixa da Polícia Militar, descobri uma tuberculose começando.

Um espirro vermelho e um escarro com gosto de sangue me deixaram três meses sem sair de casa, no Castelão. Seis comprimidos em jejum, de manhã, e outros que não me lembro a receita. E como eu era casado, aos 24 anos e o Saulo ainda era um bebê, o médico - doutor Madeira - mandou que me isolasse em domicílio pra não contaminar ninguém. Fiquei sem salário, perdi o estágio na antiga Teleceará.

O fim do mundo foi adiado novamente para mim. É um saco a atual quarentena, mas não tão pior do que não ter onde deixar os filhos no bairro e precisar ir cuidar dos rebentos dos outros. Provavelmente, estou com Influenza. Disse a médica da emergência ao olhar o exame de sangue. Tomara.

Talvez seja verdade. A experiência não ensina nada a ninguém, é só uma oportunidade fugidia para sermos menos idiotas. É pura vaidade. Se fosse o contrário, não teríamos havido a 2º Guerra Mundial nem as trocentas carnificinas até hoje. Nem a invasão do Brasil.

O que a gente vai aprender com o coronavírus? Nada. Só vaidade e um bocado de bestas dizendo o quão foi importante para combater a guerra contra a mais noviça peste de nós. As catástrofes também têm essa serventia.

 

Foto do Demitri Túlio

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