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Ninguém podia ter saudades
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Ninguém podia ter saudades

Tipo Crônica
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A vontade que tenho, aqui do 14º andar, é que o avião fantasma da Panair do Brasil parasse rente a varanda e me levasse em uma de suas poltronas onde nunca me acomodei.

Talvez sejam delírios de uma febre insistente. A quentura e uma dor nos ossos moendo-me entre a cama e o chão do quarto.

Não contei ainda, mas a referência da Panair e a vontade de voar para onde não tenha dor para ninguém têm parte com minha mãe biológica.

Descobri, depois de muito peneirar silêncios na família onde fui bem-criado, mamãe era uma aeromoça negra da empresa mais charmosa de aviação que o Brasil teve.

É verdade. Daí nunca ter entendido por que meus cinco irmãos tinham cabelos lisos e aloirados e eu um pé no pixaim. Num crespo que o barbeiro de bicicleta classificava de "revoltoso". Minha mãe de criação subia nas tamancas.

Nasci caboclo numa família de gente branca dos olhos claros por parte de meu avô paterno. Povo cheio de preconceitos e minha bisavó racista. As meninas e os meninos alvos eram carinhosamente tratados por "carneirinhos", "galegas", "anjinhos".

Pois bem. Em 1965, mamãe teria desaparecido em uma das rotas da Panair do Brasil quando Castelo Branco, canalhamente, decretou o fim da empresa sobre o pretexto falacioso de nacionalização da companhia.

Destroçou com a vida de pelo menos cinco mil pessoas entre donos e funcionários. Tão maldoso e premeditado o ato que a Varig já esperava para assumir as linhas da Panair. Depois, também divididas com a Cruzeiro do Sul.

Mamãe sumiu. Em sua última viagem, ela estaria entre Paris e o Oriente. É porque foi assim, todo mundo acabou sendo pegue de surpresa por Castelo Branco. Não havia sinal que algo aconteceria a uma das empresas mais bem-sucedidas do Brasil. Se bem, havia movimentos. Os urubus da Varig já sobrevoavam.

No dia 10 de fevereiro de 1965, quem estava no caminho do aeroporto para embarcar ouviu no rádio que a Panair do Brasil tinha sido tomada pelos milicos. Mas ficou sem entender e, mesmo assim, foram trabalhar.

Mas não havia mais voos. Tudo cancelado e aviões confiscados. O serviço burocrático estava interrompido. O pior, é que a Panair do Brasil era tão aplumada que revisava, inclusive, os motores de aviões da FAB. Veja a imbecilidade dos generais e brigadeiros.

O tal Eduardo Gomes, na época ministro da Aeronáutica, acabou ocupando a fábrica de motores e ainda pressionando um juiz para arrebentar de vez com a empresa de Celso da Rocha Miranda e Mário Wallace Simonsen.

Mamãe desapareceu nessa nuvem de terror. Nunca ninguém me contou o que aconteceu com ela. Não há fotos, não há documentos, não há cartas... Até compreendo. Por muito tempo foi proibido ter saudades lá em casa.

Pode ser delírio da covid-19, a história de hoje. Aliás, nem fiz o teste porque não tem suficiente pra todo mundo. E, se tivesse feito, provavelmente não teria saído o resultado. Pode ser H1N1, Zica, Chikungunya, dengue pela terceira vez, coronavírus... O que importa, mesmo?

A vontade que tenho, aqui do 14º andar, é que o avião fantasma da Panair do Brasil parasse rente a varanda e me levasse em suas asas. E, por tempos, achava que Elis Regina conheceu minha mãe e que Milton havia feito a música pra em memória da aeromoça negra.

 

Foto do Demitri Túlio

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