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A invenção da abundância
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

A invenção da abundância

Tipo Crônica
1404demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1404demitri

Não deve ser fácil, todo dia, a vida de um passarinho engaiolado. Gaiolas minúsculas, mesmo num viveiro com árvore dentro... E nenhuma fenda de escapadela para um voo. Pouquinho o desejo, planar até a Rui Barbosa! Uma rua cheia de pés de oitis e a periquitada palestrando ao mesmo tempo na esquina com a Afonso Celso.

Já fui carcereiro de passarinhos. Sim, porque amo-os tanto que os queria bem perto. Achava que servir coentro, cheiro verde, chicória, derramar muito alpiste, oferecer a melhor semente de girassol, água fresca e limpar o cocô do chão falso da gaiola eram gentilezas.

Curti a postagem de um amigo tragado pelo Instagram (feito eu), de Crime e Castigo. Um grifo assim: Compreende, será que compreende, meu caro senhor, o que significa não ter para onde ir?

Melhor jogar fora as asas pelas frestas do arame. Pular daqui, impacientar-se dali, descer para o "flande", afiar o bico na pedra de cálcio, cantar, beber água de pescoço pra cima, choramingar, assobiar e fazer silêncio quando a luz fluorescente se apaga.

Depois, mais outro dia na melhor gaiola da Aldeota. Boa, espaçosa, vista para a rua, entrançada com bambu e um mocó para fornicar e fazer nascer mais falsos felizes que as asas não lhes servirão para ir aos oitis da Rui Barbosa. Um voozinho que fosse! Suspira.

Daqui da varanda, escuto um gavião-pega-pinto. Vem toda manhã, livre, fazer ponto para atalhar a vida breve das rolinhas e dos pombos que o homem fez virar praga. Rasga alto, avisa que vai caçar e se amostra na luz de uma parabólica. Mas tem de tomar cuidado com o atrevido bem-te-vi, ele ataca.

Do parapeito, vejo também uma vizinha. Sete e pouquinho da manhã numa atividade física por trás da tela de proteção e da coluna que separa os apartamentos. Bonita, de biquini, no sol e tentando voar num querobel no espaço que restou.

Era assim. Antes da tal agonia mundial, estruíam de tanta abundância. Muita fumaça na camada, muitos tomates pobres no vão da porta de cortar incêndio, muito cartão de crédito, muita árvore derrubada.

Também veio a seca de seis anos encarrilhadas no Ceará, no Semiárido. Secaram os mares do Sertão, morreram ursos brancos na falta de gelo e um calor indizível faz a gota descer pela coluna, rego e o cu do mundo.

E nem aprendemos. Ora, já parei de beber os três litros d´água por dia porque já me sinto curado, imune e não mais transmissor do corona! Por que vou mentir que seremos mais solidários quando piorar a escassez? Um ou outro, talvez. Um amigo chegado, a irmã, a mãe, o crush...

Fico matutando, e quem nem casa tem para se engaiolar e comer alpiste delivery? Sementes que afinam o canto? Água fresca pingada de copaíba e extrato de romã?

Não deve ser aturável, todo dia, a vida dos papagaios de sala e cozinha. Anos e anos, desde a maldição dos portugueses. Acorrentados, asas cortadas, dar o pé, ser chamado de loro, imitar o toque do telefone, o berro do bebê que vai ser livre... E ele não. Sessenta, 80 anos sem voar e os oitis da Rui Barbosa cheios de periquitos opinando sobre tudo.

 

Foto do Demitri Túlio

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