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A verdade não rima
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Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM

Marcos Sampaio arte e cultura

A verdade não rima

Como cápsulas do tempo, muitas músicas entraram para os livros de história ao registrarem seu momento, sejam como crônicas cotidianas ou mesmo denúncias das muitas injustiças que nos atravessam. São tragédias diárias transformadas em obra de arte por nossos compositores
Tipo Análise
Adriana Calcanhotto lança música em homenagem a Miguel Otávio (Foto: Leo Aversa/ Divulgação)
Foto: Leo Aversa/ Divulgação Adriana Calcanhotto lança música em homenagem a Miguel Otávio

Na última sexta-feira, 18, Adriana Calcanhotto lançou nas plataformas digitais o single "2 de junho". Apresentada pela primeira vez na turnê "Um show só", transmitida em setembro, a canção fala de um episódio recente do Brasil. Foi em 2 de junho deste ano que o pequeno Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, morreu ao cair de um prédio luxuoso do Recife. Ele havia sido deixado aos cuidados de Sari Corte Real, primeira-dama do município pernambucano de Tamandaré, enquanto sua mãe, a empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, levava os cachorros da patroa para passear. Ajudado por Sari, Miguel pegou o elevador até o 9º andar e de lá caiu.

"Levei o mês de agosto inteiro escrevendo essa música. Nunca uma canção foi tão dura de ser feita pra mim, nunca tive esse tipo de emoções e sentimentos durante uma composição. Ao mesmo tempo, não consegui não fazê-la, e senti muita raiva do que estava escrevendo", comenta Calcanhotto em material enviado à imprensa. Sua raiva, inclusive, é a de muitos, ecoa em quem vê nessa história uma série de injustiças que fazem uma infinidade de vítimas diariamente.

"Trinta e cinco metros de voo, do nono andar. Cinquenta e nove segundos antes de sua mãe voltar. O destino de Ícaro, o sangue de preto, as asas de ar", descreve Calcanhotto sem preocupação com métrica ou rima. A composição me fez lembrar um caso histórico, registrado em livros, do estudante secundarista Édson Luiz de Lima Souto. Ele era uma das 300 pessoas que jantava no restaurante universitário do Rio de Janeiro, apelidado de Calabouço, quando, em 28 de março de 1968, a polícia invadiu o local atirando para dispersar uma manifestação contra os altos preços da comida do local. Um tiro no peito matou Edson, que teve seu corpo carregado pelas ruas do Rio de Janeiro como símbolo da agressividade sistemática da ditadura brasileira.

Milton Nascimento registrou a história na canção "Menino", do disco "Geraes" (1976). "Quem cala sobre teu corpo consente na tua morte", avisa o cantor logo na primeira frase. Não há espaço para calar sobre tal episódio. Quatro anos depois de Milton, Elis Regina voltaria a essa memória no show "Saudades do Brasil". Das riquezas nacionais, passando pelo humor frio com que enfrentamos nossos medos, até a morte do estudante paraense, de 17 anos, encarado como uma ameaça à nação, ela costurou a história nacional numa série de alegorias.

"Menino" estava no repertório. Mas, antes dele, Elis trouxe os versos trágicos e arrasadores de "Onze Fitas": "Quantas vezes se leu só nessa semana essa história contada assim por cima. A verdade não rima". Composta para a peça "Dia da Caça", de José Louzeiro, a composição de Fátima Guedes dá a medida exata das muitas vítimas da sociedade, seja ou não tempos de ditadura. "Não fosse a vez daquele, outro ia", segue Fátima mostrando a banalidade com que se vão essas vítimas.

Leia também | Confira mais histórias da música na coluna Discografia, de Marcos Sampaio

Em textos diretos e sem preocupação poética, como o "2 de junho" de Adriana Calcanhotto, ou no texto metonímico de "Calabouço", homenagem de Sérgio Ricardo a Édson Luiz, e até no conselho sóbrio de "Menino", a arte cresce quando mostra que pode ser relevante para a sociedade.

Novos singles

Caio Castelo lançou o clipe de "Berro", primeiro single do seu quarto disco "Ir reconhecível". No vídeo, ele contracena com a esposa Camila Lima. A composição é de Clau Aniz. Entre closes, insinuações, intimidades e muitas cores, a direção do vídeo é de Allan Diniz.

Lorena Nunes lançou esta semana o clipe de "Calma", música de Mateus Fazeno Rock. A faixa integra o repertório do disco "La mar", que Lorena divide com os multiinstrumentistas Cláudio Mendes e Igor Caracas. O álbum está previsto pra ser lançado em outubro deste ano.

Lançada no disco de estreia de Djavan, "Maçã do rosto" está no repertório do novo disco de Elba Ramalho, "Eu e Vocês". Produzido pelo filho da cantora, Luã Yvys, o álbum foi concebido durante a quarentena e conta com outras participações familiares. O segundo single, "Ainda tenho asas", lançado esta semana, é uma parceria de Elba com Luã.

Parte do projeto "Ao vivo no Rio", Ricardo Bacelar lançou esta semana o clipe do single "Nada será como antes". Parceria de Milton Nascimento com Ronaldo Bastos, a nova versão ganhou dueto de Ricardo com a cantora e pianista carioca Délia Fischer.

O músico cearense Xavier lançou esta semana a mixtape "Mormaço", que divide com pernambucanos Arthur Dossa e Arquétipo Rafa. Arquitetado desde 2016, o projeto foi apresentado no programa Zona de Criação, do Porto Dragão, com cada uma das quatro faixas ganhando uma releitura visual do artista Uirá dos Reis.

 

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