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Célia, uma dama sofisticada
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Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM

Marcos Sampaio arte e cultura

Célia, uma dama sofisticada

Nenhum adjetivo melhora ser dado a Célia senão "cantora". O substantivo pode ser elevado a adjetivo como que a resumir o que foi a paulistana que, mesmo sem ter o reconhecimento de um grande público, manteve ouvintes fieis por mais de 40 anos
Tipo Opinião
Foto da capa do disco de estreia de Célia (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Foto da capa do disco de estreia de Célia

No próximo dia 29 serão marcados os quatro anos de morte da cantora Célia. Sim, só Célia, mesmo. O sobrenome “Regina Cruz” foi suprimido artisticamente e reservado somente à sua certidão de nascimento – datada de 8 de setembro de 1947. Curioso que uma cantora, num país de tantas cantoras, queira ser reconhecida apenas por um nome, e um nome comum. O mesmo fizeram Márcia (que era Márcia Elizabeth Raimundo Barbosa) e Marisa (que era Vertullo Brandão, e depois adotou o “Gata Mansa”).

Voltemos a Célia. Dona de uma voz grave, afinada, com uma interpretação certeira, sem excessos, e de um gosto muito particular e sofisticado de selecionar repertório, essa paulistana estreou em disco em 1970, mesmo ano em que se apresentou no programa de Flávio Cavalcanti, um imenso sucesso de audiência à época. “Tive a grande chance de lançar essa voz linda que não agride. Que acaricia. Que faz bem. Que é poesia”, orgulhava-se o apresentador.

Célia foi ao programa apresentar seu primeiro disco e, ali mesmo, foi assistida por Elis Regina, Maysa e Erlon Chaves. Elis virou uma de suas fãs. Maysa, quando Flávio Cavalcanti lhe pediu um conselho para a novata, respondeu: “Para uma cantora como Célia a gente não dá, a gente pede conselho”. E o maestro Erlon Chaves deixou suas impressões registradas no verso do disco de estreia de Célia: “Seu timbre de voz é formidável e a tranquilidade com que passa pelos intervalos musicais mais difíceis vem demonstrar, salvo algum engano, que ela é possuidora de uma belíssima voz inata”.

De fato era e nesse primeiro disco veio também o primeiro sucesso: “Adeus batucada”, regravada em compasso lento, diferente do que fez Carmen Miranda. Elogiada e premiada, garantiu o segundo disco e fez uma obra rara que, décadas depois, viraria ouro nas mãos dos DJs. Logo de cara, uma inédita de Roberto e Erasmo, “A hora é essa”, cheia de suingue, balanço e aquele jeito de cantar que nada soa fora do canto.

Até falecer, em 29 de setembro de 2017, Célia acumulou fãs, passou um período longe das grandes gravadoras, fez alguns LPs/CDs mantendo sempre o mesmo apresso pelo bom gosto. Importante: esse apresso por bom gosto não a impediu de dividir com Zé Maurício Machline o disco “Os gordos também amam”, uma celebração ao sobrepeso que compartilhavam e cujo encarte inclui sanduiches, doces e uma cartela de adesivos com frases como “Amor não tem tamanho” e “Charme em cada dobra”.

O deboche cobria um disco super curioso, com momentos hilários e dramáticos. Numa discografia rara, errática e valiosa, Célia foi espalhando interpretações que merecem ser ouvidas por todo fã de MPB. “Mãe eu juro”, de Adoniran Barbosa, e “Saudade de amar”, de Francis Hime e Vinicius de Moraes, são de uma melancolia quase palpável. “Eternamente” (Tunai/ Sergio Natureza/ Liliane” e “Êxtase” (Guilherme Arantes) são sofisticação pura. E “Não se vá”, em dueto com Ney Matogrosso, é o amor brega levado a sério num duelo de vozes arrebatador.

Mais recentemente, a geração TikTok encontrou Célia por acaso, quando o rapper Freddie Dredd incluiu um sampler de “David”, faixa daquele mesmo disco de estreia de 1970, na faixa “Opaul”. Aí uma influencer norte-americana fez uma dancinha, que viralizou, e boom! Temos uma explosão de buscas nas plataformas digitais pela paulistana que nunca buscou o sucesso barato. A Warner aproveitou a chance e soltou a coletânea dupla “Célia – Uma antologia”, numa pequena tiragem em CD. Como é comum nessas situações, a febre cedeu, as buscas baixaram e Célia voltou para seu lugar de origem, a eternidade das grandes cantoras brasileiras que o exterior descobre antes do Brasil.

Leia também | Confira mais histórias e opiniões sobre música na coluna Discografia, com Marcos Sampaio

Thiago Marques Luiz, produtor musical
Thiago Marques Luiz, produtor musical

Bate-papo com Thiago Marques Luiz

O produtor Thiago Marques Luiz criou uma marca profissional muito forte: trabalhar com artistas que, apesar importância histórica, se viram afastados do grande mercado. Foi assim com Cauby Peixoto, Claudette Soares, Eliana Pittman e Célia. Desta última foi produtor e amigo. A seguir, ele fala desta relação que rendeu discos, shows e risadas.

- Pra você, qual a grande marca da obra de Célia? O que ela trazia nos discos ou nas interpretações que marcava com algo de originalidade?
Thiago Marques Luiz – Acho que a Célia era uma grande intérprete no sentido literal da palavra. Ela interpretava o que cantava. Ela tinha uma série de qualidades que faz um cantor ser grande. Ela tinha desde uma dicção perfeita até um timbre muito bonito, muito afinado. Então, eu acho que o que ela trazia que marcava era a beleza da voz dela dentro de uma dicção perfeita e de uma colocação de voz sem afetações.

- Você foi produtor de alguns discos da Célia. Queria saber como começou essa relação, quando e como vocês começaram a trabalhar juntos.
Thiago Marques Luiz – Conheci a Célia no comecinho dos anos 2000, a gente ia fazer um projeto pra gravadora Trama que não chegou a acontecer. Eu estava começando a minha carreira de produtor musical, também não tinha muito traquejo pra lidar com gravadoras e tudo. Eu estava ali uma pessoa começando, tentando. E a gente tentou fazer um projeto dela em homenagem às cantoras da Era de Ouro do Rádio, e terminou que não deu certo. Não prosperou, mas a gente manteve a amizade, começou ali a sempre se falar. Até que, em 2006, a gente começou a fazer um disco dela com o Dino Barione. Eles eram parceiros de palco, faziam shows juntos de voz e violão, shows muito legais. E aí a gente teve a ideia de fazer um disco dela com o repertório do show e mais algumas músicas, e fizemos o disco azul dela, aquele “Faço no tempo soar minha sílaba”, que foi o início de uma parceria super produtiva, né?

- Queria que você falasse de como era a Célia nesse momento de escolha de repertório, arranjo e gravação. Como acontecia essa parceria entre intérprete e produtor?
Thiago Marques Luiz – Ela era uma cantora que gostava de ser dirigida e ela dizia. Ela dizia assim: “eu gosto de ser dirigida, eu gosto de ser produzida. Eu não sou uma cantora produtora, eu preciso que alguém me leve”. Ela tinha essa consciência, então ela confiava em mim como produtor. Quando eu dava alguma sugestão, ela confiava, ela simplesmente ia de cabeça. E quando a gente fala nessa parceria entre intérprete e produtor, é uma questão de também admiração. Eu não era apenas um produtor e amigo, eu era um fã da Célia e continuo sendo. Eu acho ela uma das maiores cantoras do Brasil. Quando a gente tem essa relação profissional onde inclui a admiração, tudo floresce. Acho que esse foi o grande diferencial do trabalho dela como cantora comigo como produtor.

- Além da relação de trabalho, como era ela nos momentos extra-trabalho?
Thiago Marques Luiz – Super bem humorada, engraçadézima, super espirituosa, inteligente, muito divertida. Era uma pessoa assim agradabilíssima, até hoje eu tenho muita saudade dela. Às vezes me pego rindo das brincadeiras que a gente fazia, das expressões. Eu tinha uma brincadeira com ela muito engraçada que eu só falava com ela na terceira pessoa. Eu falava “ah e como é que ela está hoje? Ela vai fazer o que?”. E eu estava falando com ela mesma e ela morria de rir. Ela não perdeu o bom humor nem quando estava morrendo numa cama de hospital. Ela ficou internada, na realidade, quase um mês eu acho. Talvez uns 20 dias. Aí, quando ela começou a piorar mesmo, um dia eu fui visita-la e ela disse: “Thiaguinho, eu vou morrer, né?”. (Ele responde) “Não, por que você está dizendo isso?”. (Célia) “Por que eu estou percebendo, estou vendo o movimento como as coisas estão evoluindo. Mas também eu parei pra pensar aqui, fiquei analisando e vendo que eu não tenho nada pra reclamar, né? Tudo que eu queria eu fiz. Então, é vida que segue”. Eu achei aquilo tão grande. É um entendimento, da vida, do encerramento de um ciclo, né? Essa era a Célia.

- Apesar da qualidade e do tempo de carreira, Célia não foi uma cantora de grande popularidade nem de grandes cifras. A que você atribui isso? E como era a carreira dela nesse período em que vocês trabalharam juntos? Mantinha uma boa agenda de shows?
Thiago Marques Luiz – Eu acho que ela era uma cantora para poucos e ela cantava um repertório para poucos. Na verdade, a Célia era uma cantora preguiçosa. Ela não era aquela pessoa que corria atrás. Se ligassem pra ela, bem. Se não ligassem ela também não ligava. Ela tinha um temperamento muito... é feia essa palavra, mas hoje eu posso dizer que ela era uma preguiçosa, mas num bom sentido, sabe? Daquela preguiça que não tem aquela gana, aquela vontade de passar por cima de todo mundo, de fazer, de acontecer. Não, ela era muito na dela. Sempre trabalhou, sempre fez show. Como ela cantava muito em navio também, ela foi uma pioneira nisso. Nos anos 1980, quando ninguém fazia isso, ela começou a fazer shows em navio e fez até pouquíssimo antes de morrer. Fazia shows internacionais, aqueles cruzeiros que iam pra fora do Brasil. Muita gente conhecia ela através disso. Por que, como ela era aquela cantora que apareceu no começo dos anos 1970 e depois sumiu da grande mídia – por que até os anos 1970, ela ainda aparecia bem na televisão; depois ficou uma coisa meio escassa, não era muito – então, o público dela era o que a conhecia dessas apresentações em navio, depois veio um público mais jovem que passaram a conhece-la através dos discos que ficaram cult, com o (maestro Arthur) Verocai, os dois primeiros. Mais especialmente o segundo, que é um disco super venerado.

- Ela tinha acesso fácil a compositores para gravar?
Thiago Marques Luiz – Olha, eu fiz um disco dela, o último, que é o “Aquilo que a gente sente”. Esse disco tinha músicas inéditas que a gente pediu pra alguns compositores, como o Zeca Baleiro, a Joyce, a Fátima Guedes, e eles todos mandaram muito carinhosamente. Foi basicamente o único trabalho que fiz com ela reunindo músicas inéditas. Ela era muito querida pelos compositores. Eles a adoravam. É uma grande intérprete, né? Um dia, o João Bosco assistiu um show dela e viu ela cantando “Corsário”. Ela cantava assim “Meu coração tropical está de neve/ Mas ferve em seu cofre gelado...”. Ela separava a primeira frase do advérbio, do “mas”. Aí o João Bosco foi falar com ela e disse “Poxa, achei genial essa interpretação que você deu, por que você separou e é uma coisa que pouca gente saca, e eu mesmo não separei isso quando gravei por uma questão da música. Você conseguiu separar e deixa-la melodiosa”. Quer dizer, são características de grandes intérpretes que, quando vão cantar uma música, estudam. Ela prestava muita atenção na música, na letra, no que a música dizia e isso também é por conta da vivência dela em teatro, com os diretores com quem ela trabalhou, como o Oswaldo Mendes, a Myriam Muniz, que também dirigiu o “Falso Brilhante”, da Elis Regina. Ela era muito ligada a esse pessoal. Ela gostava de ser dirigida e ouvia. Era uma boa ouvinte. Ela passou a ser mais reconhecida acho que depois que morreu. Pouco tempo depois que ela morreu, eu fui viajar pra Europa e cheguei numa Fnac em Paris e, quando entrei, levei um susto por que discos dela estavam todos expostos. Era uma Fnac imensa que tinha lá. Era em vinil e em CD! Pô, o que é isso? Eu descobri que o disco dela estava bombado na Europa. Meu deus do céu, e a Célia não viu isso. Engraçado, né?

- Depois da morte dela, foi lançado o disco póstumo "Canções de Chico Buarque". Existem outros materiais inéditos dela, que podem vir a ser lançados? Existe algum projeto em vista envolvendo sua obra?
Thiago Marques Luiz – Não tenho muito material dela não. Tenho umas poucas coisas. Umas gravaçõeszinhas assim. Tudo que eu gravei dela que fosse aproveitável a gente já lançou. Talvez apareçam coisas mais antigas que foram gravadas, mas eu não tenho muita coisa que pudesse lançar agora. Adoraria ter mais material inédito dela pra lançar, mas tenho pouca coisa. Tenho algumas sobrinhas, mas não daria um disco.

- Há cerca de um ano, a tiktoker americana Charli D'Amelio chamou a atenção pra um sampler da música "David", gravada pela Célia. O que você achou desse episódio?
Thiago Marques Luiz – O negócio do TikTok foi o que motivou a Warner a fazer essa coletânea em CD dela que saiu recentemente, duplo (“Célia – Uma antologia. Sucessos e raridades”). Foi com esse mote do TikTok que o Renato Vieira, jornalista e pesquisador, conseguiu vender esse peixe lá pra Warner. Eles lançaram o CD com uma tiragem bem pequenininha, vendeu tudo. Foi um trabalho caprichoso, legal, e ele me chamou pra fazer junto com ele. Achei engraçado, achei curioso, mas não mudou nada. Não agregou público por que o público de TikTok, que faz aquilo, não sabe nem quem é Célia, quer nem saber quem é Célia. Queria é fazer a dancinha, fazer o negócio. Ela passou a ter muito ouvinte nas plataformas digitais através disso, mas depois também deu uma diminuída. Teve uma época que tinha muito, era uma numeração muito alta, e agora já passou, feito fogo de palha. Igual a tudo de internet. Resumindo, acho que o que fica é a lembrança de uma cantora maravilhosa, que tinha fãs como Elis Regina, aí não precisa dizer muito. E que eu tive o orgulho e o prazer de poder fazer coisas com ela. Essas coisas me enchem de... A palavra é orgulho mesmo, sabe? Por que eu não era, como já disse, apenas um produtor, um amigo da Célia. Eu era um fã. Quero ressaltar também a importância do DJ Zé Pedro nesse processo todo de revitalização da obra da Célia. O Zé Pedro, quando fez a (gravadora) Joia Moderna, acreditava muito na Célia, ele era fã também. Então, chamou ela pra participar de vários projetos que eu produzi lá. Homenagem a Taiguara, que ela abre lindamente cantando “Mudou”, homenagem a Guilherme Arantes, tudo que era homenagem que a gente fazia chamava a Célia por que era certeza de que seria uma gravação maravilhosa. Ele bancou também na Joia Moderna aquele disco dela cantando Roberto Carlos e, depois, bancou o DVD que foi lançado depois que ela morreu. Infelizmente, demorou muito para sair. As imagens dela cantando no Teatro Itália (SP), sem plateia, lindo aquilo. Foi uma direção do Murilo Alvesso. Então o Zé Pedro também foi um cara muito importante nesse processo de valorização do trabalho da Célia. É importante falar nele por que através dele e da Joia Moderna, que é a gravadora dele, a gente pode ter mais da Célia nesses últimos tempos.

A playlist de Thiago Marques Luiz

O produtor Thiago Marque Luiz aquelas que, pra ele, são as melhores interpretações de Célia. Confira:

01. Adeus batucada (Synval Silva)

02. Na boca do sol (Arthur Verocai/ Vitor Martins)

03. Não há porque (Ivan Lins/ Ronaldo Monteiro de Sousa)

04. Mãe, eu juro (Peteleco/ Marques Filho)

05. Não existe amor em SP (Criolo)

Elton John, The Lockdown sessions
Elton John, The Lockdown sessions

Notas musicais

- Está em pré-venda no site da Universal Music a edição em CD do novo disco de Elton John. "The lockdown sessions" foi gravado no período da pandemia e coloca o astro inglês ao lado de estrelas da música internacional. O elenco inclui gente como Dua Lipa, Stevie Wonder e Eddie Vader.

- Dois dos melhores instrumentistas brasileiros da atualidade, Michel Pipoquinha (baixo) e Pedro Martins (guitarra) realizam uma série de shows virtuais gravados no Cineteatro São Luiz. Com repertórios diferentes, os shows acontecem nos dias 16/09, 30/09, 13/10, 28/10 e 11/11. Confira trechos dos ensaios no instagram @blogdiscografia

- Depois de um tributo a Tom Jobim, o pianista Paulo Malaguti e o cantor Augusto Martins se reencontram para outra homenagem. “Como canções e epidemias” é uma celebração à obra de Aldir Blanc, que completaria 75 anos em 2021. Com 14 faixas, o disco já está disponível nas plataformas digitais. 

Foto do Marcos Sampaio

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