Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
Pouco antes de visitar o Ceará, o presidente Bolsonaro trocou o lugar de nascimento de Padre Cícero e chutou que o religioso – do Crato – seria pernambucano. Na tentativa de conseguir a informação correta, pediu ajuda aos assessores, a quem chamou de “paus de arara”. No mesmo período, o também presidenciável Sergio Moro, no Twitter, fez uma referência ao “agreste cearense”, região que, pelo que reza a Geografia, não existe.
Olhares desinformados e preconceituosos sobre o Nordeste, ou querer fazer de seu povo uma massa homogênea que fala engraçada, não são incomuns. Já me perguntaram por exemplo, se aqui tinha carro (sim, carro!) e tentaram me convencer que o sotaque oficial brasileiro é o chiado carioca. A estes e outros, sempre me vem uma questão: Você conhece o Nordeste?
A pergunta vem de Belchior e Rodger Rogério, e está no disco “Chão sagrado” (1975). Esta é uma dessas obras que expressam muito do que é Nordeste, indo além do chapéu de couro que tantos candidatos usam (somente) durante visitas à região. Como se isso, por si só, garantisse intimidade. Até Axl Rose usou um quando trouxe o Guns’n’Roses ao Ceará. Voltando ao “Chão sagrado”, o álbum é dividido por Rodger e Teti, que já haviam dividido com Ednardo o clássico “Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem” (1973).
Em 2022, "Chão Sagrado" ganha um filme contando sua história. Dirigido por Allan Diniz, “Chão Sagrado Revivido” traz Rodger interpretando canções do disco e conversando com o jornalista Dawlton Moura. Teti não participou por questões de saúde. O nome dado à faixa-título deve-se a Paulo Vanzolini, zoólogo e compositor paulista. Perguntado por Rodger se conhecia o Nordeste, o autor de “Ronda” respondeu: “meu filho, já palmilhei muito aquele chão sagrado”.
Parte do retrato daquela geração de artistas que ganhou nome de “Pessoal do Ceará”, “Chão sagrado” é um álbum sem tempo, um retrato desses de lambe-lambe, feito para guardar para o futuro. Um trabalho único na força poética e interpretativa, que se preocupou em trazer para si outros conterrâneos como Petrúcio Maia, Fausto Nilo, Brandão e Augusto Pontes. São 12 canções que passam por muitos cenários, climas e ritmos. Tem até música nordestina, acredita?
Mas o que seria essa música nordestina? A letra tropicalista “Bye bye baião”? O peso roqueiro de "Beco da noite"? Ou ainda a harmonia carioca de “Coroação”? O arranjo cinematográfico de “Rodoviária”? Ou seriam os tambores da Nação Zumbi? A bossa nova de João Gilberto? O rock de Herbert Vianna? O samba de Roberta Sá? O piano de Vitor Araújo? O universo sonoro de Hermeto Pascoal? A voz seca e dramática de Rodger ou o agudo terno de Teti? Somos tantos e tão vários, que certamente o Nordeste é tudo isso e mais os raps de Erivan, o peso do Obskure, a imensidão de Liduíno Pitombeira e Eleazar de Carvalho... E se você duvida, te pergunto: você conhece o Nordeste?
Jornalista, compositor, músico, produtor, articulador, Dalwton Moura atua em muitas frentes da música. Fino conhecedor do que melhor se produz neste "chão sagrado", ele indica cinco canções importantes para quem quer conhecer o Nordeste.
Tem que ser nordestino pra saber dar valor ao Nordeste brasileiro (Eudes Fraga/Luiz Homero/Antônio Barros)
Todo o disco "Tudo que me Nordestes", lançado pelo cantor e compositor cearense Eudes Fraga em 2004, poderia estar nesta lista, com todos os méritos. Escolhemos aqui também a faixa que encerra o disco, com melodia de Eudes para letra de Luiz Homero tecida a partir de mote de Antônio Barros. Final à altura de um álbum extremamente inspirado, arrebatando o ouvinte desde o início e com várias canções que se destacam, entre cocos, baiões, maracatus. Produção esmerada de Eudes e grandes parceiros tanto de composição, como Paulo César Pinheiro, Fausto Nilo e Joãozinho Gomes, quanto instrumentistas e cantores, como Geraldo Azevedo, Mário Mesquita e Dominguinhos. Um álbum primoroso também pela capa e pelo encarte do CD físico, com obras de mestres da fotografia cearense e projeto gráfico assinado pela agência Íntegra. 'Urubu, mestre do voo" (vencedora de inúmeros festivais), "Amor de reis", "Na contramão" são outros clássicos absolutos no disco.
Mergulho no coração (Rogério Franco e Paulinho Pedra Azul)
Encerrando o disco "O Raso da Catarina", do compositor cearense Rogério Franco, "Mergulho no coração" é uma das mais belas canções escritas em homenagem à capital cearense. "Nossa cidade é um presente que à noite recebe o clarão do luar / Em Fortaleza existem cantigas que saem do mar...", começa a letra, escrita pelo compositor mineiro que costuma destacar que sua cidade natal, Pedra Azul, um dia se chamou Fortaleza. A beleza da canção é reforçada pela interpretação de Rodger Rogério, Téti, Davi Duarte, Eudes Fraga, Rogério Franco, fechando o álbum com um grande momento, reunindo representantes de diferentes gerações, que tempos depois se reuniriam com outros nomes da cena no disco "Futuro e Memória".
"Coivara" (Fernando Rosa)
De autoria de um dos mais talentosos compositores cearenses da geração dos anos 2000, "Coivara" nasceu com a força de um clássico, no disco de estreia de Fernando Rosa, e permanece por ser devidamente descoberta. Uma das faixas que mais chamam atenção no álbum de 2004, cheio de grandes canções, baiões, maracatus, toadas, uma musicalidade elaborada e fortemente popular, de cores regionais que passam longe de concessões, estereótipos, simplificações. A força das imagens de "Coivara", desde a letra de Fernando até sua música com uma parte A de acordes com sétima, à repente, e parte B de instigante cadência cromática, é ampliada pelo arranjo de Tarcísio José de Lima, nordestiníssimo, das cordas aos vocais do grupo Cinco em Ponto, e pela simplicidde do clipe de Henrique Dídimo. "Caiu marmeleiro, caiu sabiá, cumaru, pau d'arco, voa carcará, morreu juazeiro, mororó tombou, angico, jurema, ninguém escapou".
Estrada de Santana (Petrúcio Maia/Brandão)
Uma das obras-primas da parceria entre Petrúcio e Brandão, que se despediu em 2021, "Estrada de Santana" envolve o ouvinte entre mistérios renovados a cada audição, enquanto outras interrogações, sensações, outros sentimentos se descobrem em meio à melodia e à progressão de acordes, Nordestes de emoções, desalento, contemplação. Um deslocamento imediato. Enternecedora melancolia para "quem ouviu o passarinho cantar ao meio-dia no silêncio de um lugar". "A estrada velha de Santana, o Cemitério do Alecrim...". Profundamente nordestina, a canção arrebata, captura, conduz. Presente no disco "Ave Noturna", de Raimundo Fagner, em 1975, outra gravação destacada é a da cantora Téti, no CD "Do Pessoal do Ceará", de 2010.
Devoto (Cristiano Pinho)
A segunda faixa da ópera-rock nordestina de Cristiano Pinho, melodia esculpida pela guitarra slide abrindo caminhos intimistas que desembocam na grandeza de sons possíveis em um Nordeste de vocais, ritmo, cadência, psicodelia, raiz, progressivo, surrealismo, identidade. "Cortejo", o álbum, foi lançado em 2010 e também pode estar na íntegra nesta lista. No álbum, Cristiano alcança a grande busca de todo artista: sua expressão, sua marca registrada, sua forma de dizer, alternando-se entre a guitarra e a rabeca, também tocada com slide, bem-vinda novidade que em nada enfraquece ou descontextualiza a tradição. O maracatu de "Mar da saudade", o pad viajante de "O menino e o cego", o lindo timbre de "Cortejo" ilustram outras composições de Cristiano no disco, obrigatório para conhecer o Nordeste, palmilhar seu chão sagrado.
Notas musicais
Versão Pop
Gravado há mais de 10 anos, só agora foi lançado "Todo mundo vai saber", novo disco de Amelinha. São 12 composições de Caio Silvio e Ricardo Alcântara, com produção de Robertinho e Recife. Com clima mais pop, "Noites de Verão" e "Para um amor na Bahia" são os destaques.
Amor e luta
Acalentado há anos, Marcelo Natividade começa a apresentar seu projeto de releituras da obra de Fátima Guedes. Cuidado de perto pela compositora, serão vários EPs temáticos, sobre questões sociais e amorosas. Primeiro single, "Coisas eternas" já está disponível.
Tem que malhar
Nome super badalado na virada dos 1990 pros 2000, DJ Memê está com um novo projeto na mão. Com referências dos anos 1960 e 70, "Som bacana" traz canções inéditas e releituras, e muitos convidados. "Estrelar", de Marcos Valle, ganhou a voz de Cris Dellano e é o primeiro single.
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