Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
O legado que Elifas Andreato deixou para a música brasileira é indelével. Parece óbvio dizer isso, mas conhece sua obra quem vasculha fichas técnicas e busca assinatura em obras de arte. No caso, sua assinatura estará – pra sempre – em capas de discos como “Rosa do Povo” (1977), de Martinho da Vila; “Nervos de Aço” (1973), de Paulinho da Viola; “Nação” (1979), de Clara Nunes; e “Água da Minha sede” (2000), de Zeca Pagodinho. Todos esses já são obras impactantes só pela embalagem, imagine agora quando você os coloca para tocar.
Segundo pessoas que conheceram o ilustrador e designer paranaense, falecido em 29 de março último, Andreato era exigente nos seus trabalhos, gostava de ouvir o disco antes de criar a capa, ia para o estúdio e, não raro, dava pitacos. Não por acaso, sua relação com a música foi além dos desenhos: ele também compunha e dirigia espetáculos. Entre os parceiros do desenhista estava Jessé Florentino Santos, um desses fenômenos que a história brasileira abraça, usa, abusa e esquece de lado.
Jessé nasceu em Niterói, no dia 25 de abril de 1952, filho de um alagoano com uma sergipana. Cresceu em Brasília, onde aos 14 anos começou a se interessar por música. Ao ouvir o som dos Beatles, decidiu que seu lugar era o palco. Estreou em bailes, como baixista e, depois, cantor. Essa experiência lhe levou a tocar ainda bateria, acordeon, violão, guitarra e sax (o que tocava pior, segundo ele mesmo), atém de cantar em diversos idiomas sem dominar nenhum. Vendo aquele adolescente envolvido com a “música do mundo”, o pastor o proibiu de cantar hinos da igreja. Sorte da MPB, que ganhou um incomparável intérprete.
Numa época em que gravadoras fabricavam artistas internacionais, Jessé virou Tony Stevens e estourou na Europa e América Latina com versões clonadas do que estava em primeiro lugar nas paradas. Quando ele apresentou “Porto solidão” no festival MPB Shell, o Brasil se rendeu. Filho artístico de Elis Regina, ele não economizava garganta e alcançava agudos de soprano. Essa linhagem artística foi retratada na capa que Elifas desenhou para o álbum “O sorriso ao Pé da escada”. Entre Carlitos e Elis (diversão e emoção?), o palhaço Jessé atua em uma ópera que vai de Maysa a Saint-Preux, passando por Paul Simon e Renato Teixeira.
Antes do festival, Jessé foi vocalista do Placa Luminosa, banda que nos anos 1980 viraria hitmaker de trilhas de novelas. Responsável ainda por sucessos como “Campo Minado”, “Voa liberdade” e “Solidão de amigos”, Jessé teve interpretações que merecem atenção especial. É o caso do dueto com Nelson Rodrigues em “Maria Bethânia”, de Capiba. Tem ainda “Voz da América”, composição de Belchior, e “Eu te amo”, de Tom Jobim e Chico Buarque. Em todas, um canto visceral e arranjos que usavam bastante teclado. Apesar de ter criado uma base fiel de fãs, a crítica nunca o aceitou por completo, o vendo como um ídolo feito de exagero kitsch.
Jessé não era um compositor frequente, mas teve em Elifas seu principal (e quase único) parceiro. E este também foi responsável por muitas de suas capas de discos. O de 1982, por exemplo, é uma simples gaiola com o céu ao fundo. O pianista Pedrinho Mattar lhe perguntou sobre aquela imagem e se ele sabia voar. Jessé respondeu: “Quando estou cantando, sim”. Fã de automóveis e de alta velocidade, Clodovil perguntou por que ele corria tanto. “Já fiz psicanálise pra saber por que eu corro tanto e por que eu corro tanto de mim. Eu corro muito de mim”, disse. Jessé morreu num acidente automobilístico, em 29 de março de 1993, quando dirigia seu Ford Scort XR3, rumo ao Paraná, onde faria um show. Relatos de época contam que ele estava há quase 200km por hora. Deixou mulher e quatro filhos.
A escritora e artista visual Raisa Christina vem construindo uma obra musical relevante no Ceará. Suas "composições" são feitas de traços e cores presentes em capas de discos e clipes de artistas como Lorena Nunes, Caio Castelo e Daniel Groove. A pedido da Coluna, Raisa indica cinco capas de discos icônicas. Confiram.
(Foto: Divulgação)Mulher Tombada - Karine Alexandrino (2015) - Karine sempre me impressionou, tanto pela sua música, quanto pela sua presença. A capa de "Mulher tombada" é muito forte. Trata-se de uma fotografia em que Karine aparece performando espanto, com delineador nos olhos, longos cílios postiços e a pele pálida, respingada de sangue-batom-esmalte rubro. Pelo aspecto gráfico da imagem - os olhos destacados e o tom de violência da cena -, a capa remete à dramaticidade dos mangás japoneses ou mesmo às personagens de Tarantino.
(Foto: Divulgação)Séculos apaixonados - Roupa linda, figura fantasmagórica (2014) - Esse disco é daqueles que só se pode ouvir em volume alto, cantando a plenos pulmões e dançando pela casa. É disco de festa, tesudo, com direito a refrão acompanhado de sax melódico, mas também insinua um clima decadente, certa ironia e deboche nas letras e na estética com ares de eletrônico oitentista. A artista Alice Lara assina a capa do disco, uma pintura na qual se vê dois cachorros de bocas escancaradas, mucosas vermelhas, línguas e dentes. As pinceladas largas vão deformando as figuras, instaurando fantasmagoria e sensualidade.
(Foto: Divulgação)Songs: Ohia - Magnolia Electric Co. (2013) - Quando ouvi as canções de "Songs: Ohia", um dos projetos do músico e compositor Jason Molina, caí de amores instantaneamente. A arte da capa, feita por William Schaff, soa misteriosa, ampliando o espectro em torno das baladas que passeiam entre country, blues e indie rock. O desenho que estampa o disco traz uma figura estranha: animal híbrido com corpo de coruja, mãos e olhos humanos. As texturas em preto e branco remetem ao trabalho manual da gravura e destacam a expressão do animal, de cujo olho cai uma lágrima.
(Foto: Divulgação)Beck - Sea change (2002) - "Sea change" é o disco que mais ouvi do Beck. Também é o mais melancólico e o mais bonito de sua discografia. O retrato na capa foi feito por Autumn de Wilde, fotógrafa maravilhosa que colaborou com diversos músicos norte-americanos, inclusive com Elliott Smith, de quem era amiga. O rosto liso de Beck no fundo cor-de-rosa evoca uma suavidade andrógina e seus olhos parecem se diluir em manchas de cor, graças à edição da imagem. Apesar da paleta colorida da capa, o disco tornou-se emblema dos dias mornos e solitários.
(Foto: Divulgação)Jonas Sá - BLAM! BLAM! Rmxs (2018) - Adoro como o erotismo na música de Jonas Sá acontece de maneira lúdica, pulsante irresistível. A capa de "BLAM! BLAM! Rmxs" me impactou pelo nu frontal masculino, apresentado com doçura e delicadeza. A foto é de Jorge Bispo e a arte de capa é de Júlia Rocha, que envolve o corpo bronzeado do homem num espaço abstrato de luz, entre o azul e o violeta, e cria uma textura de papel gasto sobre toda a imagem. Há muitos exemplos de corpos femininos hipersexualizados em capas de disco, mas sinto falta da presença de corpos nus tratados com leveza e naturalidade. É meu disco dançante preferido!
Sea change (2002), de Beck “Sea change” é o disco que mais ouvi do Beck. Também é o mais melancólico e o mais bonito de sua discografia. O retrato na capa foi feito por Autumn de Wilde, fotógrafa maravilhosa que colaborou com diversos músicos norte-americanos, inclusive com Elliott Smith, de quem era amiga. O rosto liso de Beck no fundo cor-de-rosa evoca uma suavidade andrógina e seus olhos parecem se diluir em manchas de cor, graças à edição da imagem. Apesar da paleta colorida da capa, o disco tornou-se emblema dos dias mornos e solitários.
Songs: Ohia (2013), Magnolia Electric Co. Quando ouvi as canções de “Songs: Ohia”, um dos projetos do músico e compositor Jason Molina, caí de amores instantaneamente. A arte da capa, feita por William Schaff, soa misteriosa, ampliando o espectro em torno das baladas que passeiam entre country, blues e indie rock. O desenho que estampa o disco traz uma figura estranha: animal híbrido com corpo de coruja, mãos e olhos humanos. As texturas em preto e branco remetem ao trabalho manual da gravura e destacam a expressão do animal, de cujo olho cai uma lágrima.
Séculos apaixonados (2014), do Roupa linda, figura fantasmagórica Esse disco é daqueles que só se pode ouvir em volume alto, cantando a plenos pulmões e dançando pela casa. É disco de festa, tesudo, com direito a refrão acompanhado de sax melódico, mas também insinua um clima decadente, certa ironia e deboche nas letras e na estética com ares de eletrônico oitentista. A artista Alice Lara assina a capa do disco, uma pintura na qual se vê dois cachorros de bocas escancaradas, mucosas vermelhas, línguas e dentes. As pinceladas largas vão deformando as figuras, instaurando fantasmagoria e sensualidade.
Mulher Tombada (2015), de Karine Alexandrino Karine sempre me impressionou, tanto pela sua música, quanto pela sua presença. A capa de “Mulher tombada” é muito forte. Trata-se de uma fotografia em que Karine aparece performando espanto, com delineador nos olhos, longos cílios postiços e a pele pálida, respingada de sangue-batom-esmalte rubro. Pelo aspecto gráfico da imagem - os olhos destacados e o tom de violência da cena -, a capa remete à dramaticidade dos mangás japoneses ou mesmo às personagens de Tarantino.
BLAM! BLAM! Rmxs (2018), Jonas Sá Adoro como o erotismo na música de Jonas Sá acontece de maneira lúdica, pulsante e irresistível. A capa de “BLAM! BLAM! Rmxs” me impactou pelo nu frontal masculino, apresentado com doçura e delicadeza. A foto é de Jorge Bispo e a arte de capa é de Júlia Rocha, que envolve o corpo bronzeado do homem num espaço abstrato de luz, entre o azul e o violeta, e cria uma textura de papel gasto sobre toda a imagem. Há muitos exemplos de corpos femininos hipersexualizados em capas de disco, mas sinto falta da presença de corpos nus tratados com leveza e naturalidade. É meu disco dançante preferido!
Notas musicais
Parceria
Oito anos depois do excelente disco "Bossa Negra", Hamilton de Holanda e Diogo Nogueira se reencontram para lançar o single "Fim do Horizonte". A parceria deles com Seu Jorge e Marcos Portinari já está nas plataformas digitais.
Single
A cantora, atriz e bailarina Kátia B lançou o clipe de "Âmbar", single que anuncia o EP "Canções do outro mundo", previsto para 15 de abril. A canção, de ares místicos, conta com a percussão de Marcos Suzano.
Homenagem
Referência da música eletrônica no mundo, a banda alemã Kraftwerk ganhou um inusitado tributo brasileiro. Produzido por Edu Normann e Gabriel Thomaz, e disponível exclusivamente no Youtube, o álbum de 13 faixas conta com participações de Gilmar Bola 8, Edu K e a banda cearense Jonnata Doll e os Garotos Solventes.
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