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Os 40 anos do samba mórbido de Fernando Pellon
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Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM

Marcos Sampaio arte e cultura

Os 40 anos do samba mórbido de Fernando Pellon

Trilha ideal para pessoas frias e insensíveis, a morte em sua forma mais trágica também já rendeu música
Tipo Opinião
Capa do disco 'Cadáver pega fogo durante velório', de Fernando Pellon (Foto: Divulgação)
Foto: Divulgação Capa do disco 'Cadáver pega fogo durante velório', de Fernando Pellon

Nem sempre é fácil apostar na humanidade. Diante de situações absurdas, de completa insensibilidade, desrespeito e/ou frieza, dá vontade de perguntar cadê aquele meteoro que já prometeram há um tempo. Por exemplo, o que dizer de um homem que resolve compartilhar imagens da autópsia da cantora Marília Mendonça, morta num acidente de avião? Não por acaso, este mesmo homem - preso esta semana pela Polícia Civil do Distrito Federal - já havia divulgado em suas redes sociais as imagens dos corpos de Cristiano Araújo e Gabriel Diniz, também cantores sertanejos mortos em acidentes. Numa semana pouco inspiradora para a humanidade, soube ainda que o Memorial de Auschwitz pediu que seus visitantes tivessem mais respeito pelo que aquele espaço representa. Isso porque o público estava fazendo selfie no mais horrendo campo de concentração do período nazista como se este fosse uma ensolarada colônia de férias.

Fato é que alguns compositores também já captaram essa parcela da humanidade que se atrai pelo mórbido. Se para uns o sol, o mar e o amor inspiram canções, outros criaram a partir da morte. João Bosco e Aldir Blanc, por exemplo, transformaram uma cena urbana em "De frente pro crime". Com um toque de humor, criticando o desprezo das grandes cidades ao corpo estendido no chão. O compositor carioca Miguel Gustavo listou notícias trágicas no samba "Jornal de Sangue". Também jornalista, ele fala sobre um "um bicheiro assassinado em decúbito dorsal" e outras cenas semelhantes. E Gonzaguinha não economiza tragédia em "João do Amor Divino", um retrato da tristeza como espetáculo.

Mas ninguém foi tão hábil em transformar o flagelo em canção quanto o mineiro Fernando Pellon. Só para ter uma ideia, seu disco de estreia foi batizado com nada sutil título "Cadáver pega fogo durante o velório". Lançado em 1983, ele ainda teve tempo de sofrer corte da censura. Depois de um longo processo, os militares liberaram as nove faixas que falam de câncer, necrofilia, ódios e enterros decorados com flores de plástico. Tem amor também, mas na sua porção mais cruel. Embalados pelo samba mais melodioso, cuja beleza ímpar pode pegar desprevenido quem não prestar atenção nas letras, o disco contou com o luxuoso violão de Raphael Rabello, vozes de Cristina Buarque e Sinval Silva, e arranjos de João de Aquino, primo de ninguém menos que Baden Powell.

Teve outra cutucada na ditadura que estava tão moribunda quanto os personagens das canções. Pellon reproduziu na capa do disco a estética dos jornais "pinga sangue", com destaque para a forma como eles anunciavam os desaparecidos políticos. Tido hoje como um clássico cult nacional, "Cadáver pega fogo durante o velório" é um bicho estranho na música brasileira, sem pudores, sem filtros e transbordando gatilhos emocionais e até algum mau gosto, talvez. Se não, o que dizer dos versos "Ouvi dizer que o amor é como em certos casos de lepra. O sujeito se estrepa em três tempos"?

Tárik de Souza é quem faz a defesa do compositor. "Fernando Pellon vai chocar essa hipocrisia generalizada vendida com rótulo de bom gosto e status. 'Nunca gostei de eufemismo', vai logo cantando ele. E dá nome às doenças, como fazia Augusto dos Anjos", aponta o jornalista e crítico no texto que vem na capa do disco, como fosse mais uma notícia. Realmente não há meio termo, bom-mocismo ou eufemismo na obra de Pellon, que voltou a gravar em 2010 o disco "Aço frio de um punhal", muito bem apresentado por flores e lápides na capa.

Célio Albuquerque, jornalista e organizador do livro '1979 - O ano que ressignificou a MPB'
Célio Albuquerque, jornalista e organizador do livro '1979 - O ano que ressignificou a MPB'

A lista de Célio Albuquerque

Foi o Rio que passou em minha vida (Paulinho da Viola, 1970)

Um disco de samba elegantíssimo. Da bela "Meu Pecado", de Zé Keti, a pérolas de própria safra, como "Tudo se Transformou" e "Jurar com Lágrimas". Meu primeiro LP de MPB.

Vitória da Ilusão (Moacyr Luz, 1995)

O disco que Moa embarca por definitivo no samba. Tem o primeiro registro em sua voz do hino extraoficial do Rio de Janeiro "Saudade da Guanabara". Tem "Vitória da Ilusão", com a madrinha Beth Carvalho.

Nelson Cavaquinho (1973)

Nelson com seu violão vagabundo e aquela voz que era só dele. Cantando da nova "Folhas Secas", dele e Guilherme de Brito, a "Juízo Final", dele e de Élcio Soares, sem contar com um belo bloco de pérolas.

Cartola (1976)

Conhecido como "Cartola II", lançado pela Marcus Pereira sob a batuta de Pezão. É para ouvir de cabo a rabo muitas vezes. Tem de "O mundo é um moinho" até "As rosas não falam" passando por "Cordas de Aço" e "Peito Vazio".

De Pé no Chão (Beth Carvalho, 1978)

Com sorriso iluminado na capa ela dá luz para preciosidades como "Agoniza Mas Não Morre" (Nelson Sargento), "Vou Festejar" (Jorge Aragão/ Dida/ Neoci), "Goiabada Cascão" (Wilson Moreira/ Nei Lopes).

Leila Pinheiro
Leila Pinheiro

Notas musicais

Gratuito

Leila Pinheiro faz show gratuito em Aquiraz na quinta-feira, 27, às 19 horas. Convite da Tapera das Artes, ela canta sucessos e divide o palco com projetos da instituição que vem formando uma nova geração de músicos. Em tempo: Leila é convidada de um projeto em homenagem a Roberto Menescal, produzido pelo pianista Ricardo Bacelar.

Novidade

Marco do rock independente brasileiro, o Velhas Virgens estreia no formato LP lançando o disco "O bar me chama". São 10 músicas que nasceram com o clima dos anos 1970, incluindo a primeira instrumental da banda. À venda na E-Discos.Net.

Clássico

Referência na música afro-brasileira, o grupo Tincoãs lançou um registro inédito, gravado em 1983. Já disponível nas plataformas digitais, as 10 faixas trazem temas do candomblé embalados pela riqueza rítmica e melódica, e as harmonias vocais inspiradas do soul que marcaram o trio brasileiro. Imperdível.

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