De Gal Costa a Liniker, disco reúne 35 vozes em torno de clássicos nacionais
Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
À medida que nos despedimos dos ídolos que a música brasileira construiu nos anos 1960 a 1980, surge a pergunta: quem ocupará esse lugar? De Rita Lee, que faleceu, a Milton Nascimento, que se aposentou, uma geração está partindo e deixando um legado único de qualidade, popularidade e ativismo político-social. Desde que esses ídolos, muitos revelados nos festivais de música da TV, se estabeleceram, a indústria musical foi revirada ao avesso. Gravadoras foram emparedadas; parte do consumo migrou para o virtual; artistas surgidos das camadas populares tomaram o protagonismo para si; o consumo de massa passou a ser direcionado para aquilo que gera lucro imediato.
“Hoje, não tem mais ninguém que preste”. Essa é uma máxima recorrente e equivocada. Nunca deixaram de surgir artistas potentes, boas canções e obras intrigantes no Brasil. O desafio das novas gerações é: como fazer essa música ser ouvida para que se possa viver dela? Essa questão ronda um projeto coletivo lançado recentemente pela Biscoito Fino. Tomando emprestado o nome da gravadora carioca, o disco disponibilizado nas plataformas digitais, e já prometido de ganhar edição em CD, reúne 35 nomes de diferentes prateleiras se dividindo em 18 pedras fundamentais da música brasileira.
A inspiração para o disco “Biscoito Fino” veio da frase de Oswald de Andrade: “as massas ainda comerão o biscoito fino que eu fabrico”. O poeta e escritor paulista é parte fundamental da Semana de Arte Moderna, que balançou a cultura nacional em 1922 gerando ondas que chegam até os dias de hoje. Por isso, a frase de Oswald se relaciona com o que disseram, anos depois, os Titãs: “a gente não quer só comida. A gente quer comida, diversão e arte”. Sim, os desejos de um povo vão muito além das necessidades básicas e incluem conhecimento, cultura. É possível oferecer isso, basta boa vontade.
Voltando ao disco, o projeto dirigido por Ana Basbaum e Guilherme Kastrup acerta ao misturar gerações sem medo de chocar a tradição. De rappers a sambistas, tem de tudo. Por outro lado, o repertório quase todo foi composto dos anos 1980 para trás – o que volta à pergunta: como as novas gerações vão viver de sua música? A quase exceção fica para “Sem samba não dá”, interpretada deliciosamente por Jards Macalé e Criolo. A faixa é de 2021, mas quem compôs foi Caetano Veloso, mais um ídolo dos festivais.
Daí pra trás, o repertório reúne o ouro da MPB em versões originais e pulsantes. Leci Brandão desmonta a “Aquarela Brasileira” ao lado de Rodrigo Campos, Jonathan Ferr e Edgar – que recita sua “Um pedaço de amor”. O trio Metá Metá e as cantoras Bia Ferreira e Brisa Flow eletrificam “Deus lhe pague”. Liniker, Assucena, Letrux e Josyara desfolham as glórias nacionais de “Geleia Geral”. E Zélia Duncan mistura Dolores Duran com Marília Mendonça num dueto com Letícia Soares.
Com arranjos modernos e timbres que fazem a cabeça da cena revelada depois da virada do milênio, o álbum “Biscoito Fino” remexe, inclusive, na sintética obra autoral de João Gilberto. “Bim bom” e “Oba-lá-lá” ganham mais balanço e cor nas vozes de Dora Morelenbaum, Lucas Nunes e Jorge Mautner. Essas mesmas cores pintam “Para Lennon e McCartney”, nas vozes de Marina Sena e Gal Costa. Mas o encontro que veio para ficar na história é o de Maria Bethânia e Chico Chico com a obra de Sérgio Sampaio. Acompanhados só do piano de Maíra Freitas, eles vão do dramático ao sincopado numa versão ardente para “Em nome de Deus”.
Juntando ainda Arnaldo Antunes com Luedji Luna, Luiz Caldas com Illy, Duo Gisbranco com Kastrup e outros, “Biscoito Fino” merece o nome que tem. É uma reunião de artistas valiosos em torno de canções que construíram nossa história e estipularam um padrão de qualidade. Mas fica o desafio para os novos: como construir novos padrões para as massas quando o grande mercado está mais interessado no que há de mais raso? “Biscoito Fino” propõe um mergulho mais profundo. Desafie-se.
A maldição de Sérgio Sampaio
Por falar em Sérgio Sampaio, dois discos recém-lançados celebram a obra do compositor capixaba. "Meu amigo Sérgio Sampaio" (Kuarup) traz 10 faixas cantadas por Edy Star, parceiro do homenageado na "Sociedade da Grã-Ordem Kavernista apresenta Sessão das 10" (1971). Já "Poeta do Riso e da Dor" (Joia Moderna) traz a interpretação dramática da cantora e atriz Cida Moreira a serviço de 11 canções.
Os álbuns lançados simultaneamente até renderam shows em parceria, mas são releituras bem diferentes. Edy tem veia pop escrachada e, os 85 anos, brinca com rocks, boleros e sambas. Com baixo, bateria, guitarra e vocais, ele abre com a autobiográfica "Ninguém vive por mim", teatraliza "Filme de Terror" e se derrama em "Foi ela". Zeca Baleiro é convidado na acelerada "Cabras pastando"; "Eu quero é botar meu bloco na rua" ganha dueto com Maria Alcina; e o violonista Renato Piau canta e toca "Meu pobre blues", homenagem atravessada a Roberto Carlos.
Já Cida Moreira escolheu uma formação intimista e enxuta para gravar um repertório menos reconhecido. Ainda assim, ela (voz e piano), Lê Coelho (violão e guitarra) e Ivan Gomes (baixo) dão a medida exata da palavra existencialista e cáustica de Sérgio Sampaio. "Não tenha medo" mostra bem isso. A paulistana já não tem os agudos límpidos de quando gravou tributo a Chico Buarque (1993), mas perde a força em gravações como "Tola fui eu" e "Quatro paredes". Na disputa por quem fez o melhor disco, ganha a música brasileira por ter Cida Moreira, Edy Star e Sérgio Sampaio em suas fileiras.
Notas musicais
Amizade
Rosa Passos e Lula Galvão estão com novo projeto. Parceiros de longa data, eles reuniram 11 canções num disco de voz e violão. No repertório, clássicos de Johnny Alf ("Ilusão À toa"), Tito Madi ("Cansei de ilusões") e Noel Rosa ("Conversa de botequim").
Mercosul
O roqueiro argentino Fito Páez regravou seu disco clássico "El amor después del amor" com o reforço de convidados. O projeto "EADDA9223" conta com Estrela Morente, Elvis Costello, Chico Buarque, Marisa Monte e outros. O original, de 1992, é o álbum mais vendido da discografia argentina.
One man band
Na terça-feira, 13, o compositor Demitri Bitu lança seu disco de estreia. "Bitu" foi gravado durante a pandemia e conta com 13 faixas compostas, tocadas e gravadas pelo cearense. Ele também assina o projeto gráfico e os clipes que apresenta cada faixa.
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