Bebel Gilberto revira memórias musicais do pai no tributo "João"
Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
Bebel Gilberto revira memórias musicais do pai no tributo "João"
Após turbulentas notícias que seguiram a morte de João Gilberto, Bebel Gilberto se reaproxima da obra do pai no doce disco "João"
Entre o talento incontestável e o mistério que rondou sua imagem, João Gilberto é um exemplo real de mito brasileiro. Exigente, crítico, perfeccionista, genial, chato, hipnotizante, profundo, muitos nomes foram atribuídos ao baiano desde que ele saiu de Juazeiro para conquistar o mundo. A despeito de todas essas classificações, Isabel Gilberto de Oliveira, a Bebel, prefere chama-lo só de pai.
Depois de décadas em Nova York, onde nasceu, ela volta a morar no Rio de Janeiro, terra que marcou vida e obra do mestre maior da bossa nova. Nesse retorno, a cantora de 57 anos reencontra o pai no álbum "João". Sem as modernidades eletrônicas de "Tanto tempo" (2000), elogiado disco que colocou Bebel Gilberto entre as grandes estrelas internacionais, o tributo recém-lançado nas plataformas digitais - e prometido em CD e LP - coloca o repertório a serviço de um canto íntimo e emocionado.
"Essas músicas que eu botei são as que eu participei de alguma forma, fiz parte das gravações, assistindo. Era uma escolha que fazia mais sentido pra mim", revela Bebel por telefone, de Nova York. Vivendo numa ponte entre o Brasil, onde mora, e os EUA, onde mais trabalha, ela conversou com O POVO enquanto arrumava e desarrumava caixas. Não por acaso, ela abre o disco com "Adeus América". "Coincidiu de ser a primeira a ser gravada. Fui vendo o quanto ela faz sentido pra mim", justifica.
No disco anterior, "Agora" (2020), Bebel cantou sobre os últimos anos do pai, que envolveram brigas familiares e disputas na justiça. Meio como um pedido de desculpas, ela escreveu a música "O que não foi dito". Ainda assim, ela e o músico e produtor Thomas Barlett ficaram com a ideia de fazer algo a mais, que seria um disco reinterpretando a obra de João Gilberto.
"A ideia era fugir dos clássicos e qualquer coisa que fosse muito óbvia. Gosto de caminhos mais tortuosos. Falo muito do disco da capa branca (1973), do 'Amoroso', do 'Getz Gilberto 2' ('The best of two words'). Era a época em que a gente ficou mais perto", explica a cantora que recriou 11 canções com arranjos delicados que contam com a participação de Chico Brown nas percussões, reafirmando os laços familiares do projeto (filho de Carlinhos Brown, ele é neto de Chico Buarque, tio de Bebel).
E o repertório se encarrega de apertar esses laços. "Eu vim da Bahia" diz muito sobre a trajetória de João. "Eu tenho paixão pela gravação do papai. Ele transformou a música em outra. Eu quis muito ir do jeito que ele gravou", conta Bebel, que elege "É preciso perdoar" como sua preferida do disco ("A introdução parece o mantra. Não sei explicar"). Tem ainda "Undiú", uma das raras composições do próprio João, e "Ela é carioca", que ela conta ter "batido de uma forma diferente" na regravação.
A viagem íntima segue com alguns clássicos, como "Você e Eu", "Desafinado" e a imprescindível "O pato". "Era minha música preferida da infância. E eu escolhi para fazer os 'quequens' os trombones de Clark Gayton. E essa ficou sendo a última gravação dele, que sofreu um AVC saindo com uma turnê com o Bruce Springsteen", conta ela que até acrescentou uma auto homenagem. A faixa "Valsa" também ganhou os nomes de "Como são lindos os youguis", revelando a aproximação de João pelo yoga, e de "Bebel", quando também foi gravada pelos Novos Baianos.
Aliás, foi Bebel quem, indiretamente, deu nome ao clássico maior dos Novos Baianos. Novaiorquina, filha de brasileiros que viviam no México e corriam o mundo, ela misturava sotaques. Uma vez, depois de uma queda, os pais foram ao seu auxílio e ela soltou: "acabou chorare". É dessa fase do México que ela pesca a foto da capa e "Eclipse", música preferida de sua mãe, a cantora Miúcha (1937-2018). "Ela com certeza me ensinou muito sobre improvisar, fazer segunda voz. Ela se identificou comigo e tivemos uma relação musical muito forte. Diferente da relação mais séria do papai com a música", compara Bebel.
E ela guarda outras lembranças das últimas vezes que esteve com João. Como quando chegou à casa do pai, ele estava vendo um filme e eles ficaram juntos, história que ela conta sem querer entrar em detalhes. Recentemente, Bebel reconheceu a união estável dele com a moçambicana Maria do Céu, passo importante para destravar questões jurídicas que impediam lançamentos e relançamentos da obra de João. Faltam acordos com os irmãos, João Marcelo, filho de Astrud Gilberto (1940-2023), e Luisa Carolina, filha de Claudia Faissol. Fora isso, ela parece estar em paz com a memória do pai. "Era uma pessoa bacana, que queria paz, tranquilidade. Lembrando o quanto era importante se dedicar à música", resume.
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Repertório de "João"
1. Adeus América (Geraldo Jacques/ Haroldo Barbosa) "Live at 19th Montreux Jazz Festival", 1986
2. Eu Vim Da Bahia (Gilberto Gil) "João Gilberto", 1973
3. É Preciso Perdoar (Alcyvando Luz/ Carlos Coqueijo) "João Gilberto", 1973
4. Undiú (João Gilberto) "João Gilberto", 1973
5. Ela E Carioca (Tom Jobim/ Vinicius De Moraes) "En Mexico", 1970
6. O Pato (Jaime Silva/ Neuza Teixeira) "O amor, o sorriso e a flor", 1960
7. Caminhos Cruzados (Tom Jobim/ Newton Mendonça) "Amoroso", 1977
8. Desafinado (Tom Jobim/ Newton Mendonça) "Chega de Saudade", 1959
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