Leny Eversong, a estrela inexistente que o Brasil esqueceu
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Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
Foto: Divulgação Sesc/ Acervo Pessoal Leny Eversong
Leny Eversong com seu segundo disco
lançado no mercado norte-americano, em 1958
A historiografia da música popular brasileira é repleta de enredos dignos de folhetins, sejam ascensões heroicas de artistas que saíram dos ambientes menos favoráveis para o mais iluminado dos palcos, sejam quedas vertiginosas dos que fizeram o percurso inverso. Mas poucos escreveram um enredo tão improvável quanto Hilda Campos Soares da Silva, paulista natural de Santos que ficou famosa - mas muito famosa mesmo - com o nome autoexplicativo de Leny Eversong.
Sua história pode ser dividida em três partes: a juventude, quando era uma fã de programas de rádio; a vida adulta, quando desbravou os maiores mercados da música, sentou ao lado de estrelas e vendeu discos a rodo; e o fim dividido entre a pobreza e o mais absoluto ostracismo. Essa tragédia pessoal - que fala tanto sobre o Brasil de ontem e de hoje - está resumida no livro "A incrível história de Leny Eversong ou A cantora que o Brasil esqueceu" (Ed. Sesc), do jornalista e produtor Rodrigo Faour.
Antes de Leny, a vida de Hilda começa nos anos 1930, época em que a música brasileira vivia o sucesso de nomes como Lamartine Babo, Noel Rosa, Francisco Alves, Carmen Miranda e Aracy de Almeida. Cantando duas vezes por semana na Rádio Clube de Santos, depois transferida para a Rádio Atlântica, "Hildinha, a Princesinha do Fox" chamou atenção por dois elementos: a facilidade para cantar em inglês e a potência de sua voz. Uma curiosidade: ela não falava inglês, mas decorava bem os sons.
Foto: Divulgação Sesc/ Acervo Pessoal Leny Eversong
Leny Eversong em ação na TV, nos anos 1960
Outra curiosidade: ela era uma garota de 12 anos quando precisou pedir licença aos pais para frequentar estúdios. E foi logo em seguida que ela teve que lidar com as primeiras tragédias, quando perdeu a mãe aos 13 anos e o pai aos 15. Com essa mesma idade, casou pela primeira vez e foi rebatizada como Leny Eversong pelo gerente da Rádio Atlântica, Carlos Baccarat. Foi ele também quem a convenceu a cantar jazz, já que as óperas que ela queria eram bem mais inacessíveis para uma menina pobre que ia trabalhar descalça para não gastar o único sapato que tinha.
A dica de Baccarat para que Leny cantasse jazz foi certeira e seus primeiros discos vieram com composições de Irving Berlin, Ned Washington, Johnny Mercer, Harold Arlen e outros dessa estatura. Com o tempo, o repertório se ampliou para sambas, boleros, sambas-canção e o que exigisse força nos pulmões, algo que ela tinha de sobra. Sua interpretação de "Jezebel", de Wayne Shanklin, causava espanto por onde passava.
E ela passou por muitos cantos. A começar por Nova York, quando foi convidada a cantar numa noite de música brasileira com o apoio dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand e da embaixada do Brasil nos EUA. Foi um caminho sem volta e ela passou a ser disputada pelo mercado americano e europeu. De Las Vegas ao Olympia, em Paris, ela emendou turnês pelo mundo. Foi vista pelo ator Kirk Douglas, pelo ídolo Frank Sinatra e ainda esteve com Elvis Presley no mítico programa de Ed Sullivan - o mesmo que recebeu os Beatles anos depois.
O sucesso e a riqueza chegaram para Leny Eversong. Mas ser brasileira não ajuda e por aqui ela era julgada por dar pouca importância ao repertório do seu país. Mesma acusação que pesou sobre Carmen Miranda: era taxada de americanizada e de não dar valor à música nacional. No começo, ela se defendia dizendo que por onde passava se identificava como uma artista brasileira. Depois chutou o balde e viu que o Brasil é que não dava valor a ela.
Para complicar, seu peso foi motivo de chacota, que ela driblava com algum humor. Para se ter ideia, quando foi convidada a dividir um programa com Cauby Peixoto, o cantor se negou a chamar a amiga de "elefante", como mandava o roteiro. Desde trocadilhos até ofensas pesadas ou fazê-la posar para fotos numa balança ou com um imenso garrafão de vinho, falar do "tamanho" de Leny Eversong tornou-se comum nas revistas de celebridades. E aí também começa o calvário da brasileira que fez mais de 700 shows no exterior e atuou na TV e no cinema. Sem nunca negar seu apreço pela comida, não tardou para que viessem alguns problemas de saúde, como diabetes e insuficiência cardíaca. Mas o golpe de misericórdia foi outro.
Foto: Divulgação Sesc/ Acervo Pessoal Leny Eversong
Leny Eversong em uma das muitas apresentações no exterior
Em 4 de agosto de 1973, seu segundo marido, Ney Campos, desapareceu de forma misteriosa. Uma das mais prováveis explicações é que foi levado por agentes do Dops, confundido com um sindicalista e acabou morto. O corpo e a verdade do que houve nunca apareceram. Leny entrou num período de reclusão, dedicando seu tempo a encontrá-lo. A saúde declinou e, como viviam em regime de comunhão de bens e nunca existiu uma certidão de óbito para Ney, ela ficou sem poder mexer no próprio dinheiro.
Morando de favor na casa de uma amiga, fazendo pequenos shows para manter um mínimo de renda e autoestima, Leny foi sumindo aos poucos. A voz foi ficando triste e o glamour se apagando. Ela morreu em 29 de abril de 1984, sendo uma lembrança da mulher potente que lotou os maiores teatros do planeta. Foram 63 anos de vida. Como estrela internacional, ganhou prêmios, fez fama e fortuna. Como artista brasileira, enfrentou a gordofobia, o nacionalismo exagerado e a ditadura militar. Sobram imagens no youtube e uns poucos e raros discos - principalmente coletâneas - para lembrar a cantora gigante que o Brasil esqueceu.
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