Documentário da Netflix revela bastidores do single 'We Are the World'
Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM
Difícil imaginar um ser vivente em 1985 que não tenha sido tocado pelo sucesso de "We are the world". Seja cantando junto, achando brega, se emocionando, imitando maneirismos dos envolvidos, desconfiando das intenções ou contribuindo para a causa. Fato é que um time de 45 estrelas da música pop mundial, entre elas algumas ultra-mega estrelas, se reuniu para gravar um single cujos direitos autorais seriam investidos no combate à fome na África.
Mas como é possível reunir num único espaço físico tanta gente que vive pulando de continente em continente fazendo shows em estádios? Esse é o segredo contado no filme "A noite que mudou o pop", estreia da plataforma Netflix. O documentário de Bao Nguyen mostra as inseguranças, correrias e o jogo de cintura necessário para empreender uma missão desse porte. Com imagens preciosas de Ray Charles, Stevie Wonder e Michael Jackson, o filme mostra esses e outros gênios despidos dos truques de câmera e efeitos especiais.
Michael, por exemplo, é peça chave nessa história. Provocado pelo empresário Ken Kragen e por Harry Belafonte, artista aposentado e figura de proa da luta pelos direitos civis, Lionel Richie resolveu se engajar na luta contra a fome na África. Elaborado a três, o projeto USA for Africa iniciaria com um single coletivo. Os convites começaram antes mesmo de haver música a ser gravada. Em busca de um parceiro para criar esse hino que uniria não só cantores, mas um mundo em torno de uma causa, o primeiro nome que veio à mente do ex-vocalista do Commodores foi Stevie Wonder. Diante da ausência de resposta, Lionel ligou para.
Se a ideia partiu Kragen e Belafonte, a inspiração para "We are the world" veio de Bob Geldof, músico irlandês que passaria despercebido pela história se não tivesse criado o Band Aid, mega projeto que levantou fundos para combater a fome da Etiópia no ano anterior. O próprio Geldof visitou os estúdios A&M Records, em Los Angeles, e fez um discurso para lembrar àquela constelação a verdadeira razão daquela reunião. Pelo mesmo motivo, foi colocado na porta do estúdio uma placa dizendo "Deixe seu ego do lado de fora".
Mas a causa nobre não impediu que parte desse ego penetrasse no projeto. Por exemplo, havia uma grande expectativa para que Prince fizesse parte do time. Estourado mundialmente com single/filme "Purple Rain", já eram famosas também as comparações dele com o anfitrião Michael Jackson. Outra ausência sentida é Madonna, já um sucesso mundial após o lançamento de "Like a Virgin". No entanto, o filme deixa a entender que seria ela ou sua versão tresloucada e caótica, Cindy Lauper.
Se essas histórias já são saborosas, o ouro de "A noite que mudou o pop" está nas cenas de bastidores. Numa época em que não havia tantos truques para disfarçar talentos limitados, o filme vai expondo os modos de ser de cada artista, seus temperamentos e timbres reais. Stevie Wonder imitando Bob Dylan para dar uma dica de como o próprio poderia colocar sua voz na música é sensacional. Michael Jackson, que gravou antes de todos, testa timbres, tons, desenhos em busca de atender suas próprias expectativas - quando todos chegam, ele fica acuado. Al Jarreau, bêbado, sente dificuldade de fazer o que fazia de melhor. Dionne Warwick se atrapalha com problema técnicos.
Os resultados desse esforço são conhecidos: mais de 7 milhões de cópias vendidas do compacto, mais 3 milhões do LP completo (que teve diferentes versões) e 55 milhões de dólares arrecadados. A julgar pelo sucesso de "A noite que mudou o pop", essa história de sucesso ainda não acabou. Repleto de momento divertidos, bastidores curiosos e histórias emocionantes, o documentário é uma obra preciosa pela história que conta e pelas entrelinhas. Observar os olhares, sorrisos, movimentos, cansaços de cada artista em cena nos faz quase acreditar que, mais que estrelas, eles são humanos mesmo.
(Foto: Divulgação/ Netflix)Lionel Richie é protagonista do filme 'A noite que Mudou o pop'
(Foto: Divulgação/ Netflix)Lionel Richie e Michael Jackson são os autores do single 'We Are The world'
(Foto: Divulgação/ Netflix)Willie Nelson, Quincy Jones e Bruce Springsteen durante a gravação de 'We Are The world'
(Foto: Divulgação/ Netflix)Lionel Richie e Cidy Lauper durante a gravação de 'We Are The world'
(Foto: Divulgação/ Netflix)Michael Jackson e Bob Dylan durante a gravação de 'We Are The world'
(Foto: Divulgação/ Netflix)Huey Lewis, Quincy Jones e Michael Jackson durante a gravação de 'We Are The world'
(Foto: Divulgação/ Netflix)Quncy Jones, Michael Jackson e Lionel Richie, as mentes por trás de "We Are The world"
Versão brasileira
Como era de se esperar, o sucesso do projeto USA For Africa saiu rendendo cópias pelo mundo. Não faltou artista engajado querendo fazer sua versão local. O Brasil, claro, também entrou nessa. A inciativa partiu do Sindicato dos Músicos Profissionais do Estado do Rio de Janeiro e a ideia foi lançar um olhar para a seca do Nordeste. Foram nada menos que 155 vozes reunidas para a gravação de duas canções. Elas foram registradas num compacto duplo que era dado de brinde a quem depositasse 10 mil cruzeiros numa conta da Caixa Econômica (CC 900.000-6) destinada ao projeto Verde Teto, que criaria creches, quadras, escolas e teatros no Nordeste (um centro comunitário estava previsto para ser construído em Russas, aqui no Ceará).
As gravações aconteceram no Rio de Janeiro, nos dias 8 a 18 de maio de 1985. Foram 500 mil cópias com as faixas "Chega de Mágoa" e "Seca d'água". A primeira foi creditada como "criação coletiva", mas é uma composição de Gilberto Gil (um manuscrito da letra consta no acervo online do Instituto Antônio Carlos Jobim). Já a segunda é uma melodia de Fagner sobre letra de Patativa do Assaré.
Assim como "We are the world", "Chega de Mágoa" ganhou clipe exibido no Fantástico, talvez a mais importante mola propulsora de clipes da época. Como reunir todos os 155 convidados no mesmo dia e local seria impossível, o vídeo foi feito em partes e montado depois. Dori Caymmi de maestro. Erasmo e Roberto Carlos dividindo o microfone. Joyce Moreno trocando olhares com Alcione. Elizeth Cardoso, Tim Maia, Pepeu Gomes, Rita Lee, Caetano Veloso, Marlene e vários outros participaram. Tocado pelo projeto, Renato Aragão propôs a criação do programa SOS Nordeste, quem em 1986 virou Criança Esperança.
Notas musicais
João em SP
O show de João Gilberto realizado em 1998 no Sesc Vila Mariana e resgatado no projeto Relicário, ganhou edição em LP triplo. São 36 músicas do mestre, incluindo a inédita "Rei sem coroa". À venda no site do Selo Sesc.
Para Luiz
Sete anos depois de sua morte, Luiz Melodia é tema do tributo "Pérolas Negras". Com direção e produção de Mahmundi, o EP reúne seis vozes interpretando a obra do Negro Gato em versões enxutas. Entre os convidados, Sandra de Sá, Zezé Motta e Liniker.
Batucada
O grupo Barbatuques está viajando o Brasil com o show que comemora seus 25 anos. Em Fortaleza, o espetáculo acontece no TJA, dias 2 e 3 de março. No sábado, 2, eles também fazem uma oficina de percussão corporal e percepção musical. Ingressos à venda no Sympla.
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