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Todo poder para a lata
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Marcos Sampaio é jornalista e crítico de música. Colecionador de discos, biografias e outros livros falando sobre música e história. Autor da biografia de Fausto Nilo, lançado pela Coleção Terra Bárbara (Ed. Demócrito Rocha) e apresentador do Programa Vida&Arte, na Nova Brasil FM

Marcos Sampaio arte e cultura

Todo poder para a lata

Fernanda Abreu comemora os 30 anos de "Da Lata" com livro, filme e vinil
Tipo Análise
Fernanda Abreu revisita álbum
Foto: Walter carvalho/ Divulgação Fernanda Abreu revisita álbum "Da Lata" em projeto que reúne livro, filme, remix e lançamento em vinil

Em 28 de novembro de 1995, uma passeata tomou a Avenida Rio Branco, uma das mais importantes vias do Rio de Janeiro, pedindo paz. Sequestro, tráfico, abuso policial, tiroteio e arrastão competiam em atenção com uma das paisagens mais inspiradoras do Brasil. Segundo o jornal O Globo, foram 300 mil pessoas numa caminhada até a Candelária, igreja que, dois anos antes, foi palco de uma das mais chocantes chacinas do Brasil.

Quem também estava lá era Fernanda Abreu, que, no mesmo ano, lançou um disco que sintetizava muito do que orbitava aquele evento. Das crianças no asfalto ao novo som da praça, "Da Lata" expunha mazelas e belezas da cidade maravilhosa ao mesmo tempo que unia morro, asfalto, Brasil, América, samba, funk, guitarras, pandeiros e frigideiras. "A gente estava começando a ter uma aproximação maior com o nosso Brasil, que não era o Brasil da ditadura. Era de Fernando Henrique Cardoso, eleito em 1994. Acho que a gente estava com um vento de liberdade e ao mesmo tempo de tentar se aproximar novamente, fazer as pazes com o Brasil", explica ela que vem revisitando essa época.

O motivo dessa volta ao passado é o projeto "Da Lata 30 Anos", que disseca a idealização, produção, gravação e circulação desse disco que ganhou o mundo, sem perder o sotaque brasileiro. O projeto inclui um documentário, dirigido por Paulo Severo, com roteiro dele e de Fernanda. Tem ainda um livro editado pela Cobogó, com textos de Fausto Fawcett, Marcelo Tas, Hermano Vianna e outros. Por fim, o remix de "Garota Sangue Bom", por Lívia Lanzoni e Bruna Ferreira (duo From House to Disco) e o relançamento em vinil pela Universal Music.

Depois de dois discos ancorados na linguagem do sampler e das programações, "Da Lata" se esbaldou em percussões que iam das programações ao pandeiro multifocal de Marcos Suzano. "Quando eu conheci o pandeiro do Suzano, ali me vislumbrou uma possibilidade de fazer realmente uma música dançante brasileira. De colocar o Brasil dentro do universo da linguagem pop", explica Fernanda que encontrou na lata a representação de algo necessário, ao mesmo que ordinário, descartável e sem valor.

Essas ambiguidades foram retratadas por Luiz Stein, diretor de arte e ex-marido de Fernanda. Ele foi a um ferro velho e trouxe uma tonelada de material para montar o cenário das fotos, do clipe de "Veneno da Lata" e do show. O manto que ela usa na capa é inspirado em Arthur Bispo do Rosário, interno da colônia psiquiátrica Juliano Moreira, que criava obras a partir de objetos jogados no lixo. Encarnando uma "santa de lata", ela fez o contraponto "profano" posando nua na contracapa.

Passear pela ficha técnica de "Da Lata" é percorrer muitos cenários da música brasileira. Lenine veio tocar violão em "Tudo Vale a Pena". Will Mowatt, músico e produtor inglês do grupo Soul II Soul, foi convidado para produzir o disco ao lado de Liminha, Chico Neves e Memê.

Essa mistura tão brasileira rendeu uma bem-sucedida turnê nacional e fez de "Da Lata" o primeiro disco de Fernanda Abreu a ser lançado no exterior - muito por que a gravadora não acreditava no sucesso por aqui. "Eu acho que é um disco, até hoje, que diz na lata, né? É um disco direto nas letras. Ele é da lata, é da melhor qualidade. E ele é a lata, ele é o Brasil desigual que a gente vive até hoje", avalia ela que ainda pensa em remontar esse show. Mas só em 2026, após vencer o cansaço acumulado durante o projeto "Da Lata 30 anos".

Multimídia merecida

Não lembro de ter lido ninguém se referir a "Da Lata" como um clássico atemporal ou contemporâneo. Creio que merecia. Sonoramente, ele é uma amálgama bem construída de sons tradicionais e contemporâneos do Brasil - muitos deles, inclusive, viriam a figurar entre os mais ouvidos das plataformas digitais, que nem existiam à época. Além disso, ele mostra o esforço físico e criativo de Fernanda Abreu para reunir um time forte e plural de músicos, artistas visuais, poetas e bailarinos num mesmo espaço (físico!) e deixar todo mundo criar junto.

Isso fica claro no filme dirigido por Paulo Severo, que reúne imagens preciosas do disco sendo pensado e gravado nos estúdios por onde passaram Liminha, Deborah Colker, uma orquestra de cordas regida por Jaques Morelenbaum, Lenine e tantos outros. A dificuldade de Herbert Vianna em fazer um canto falado é tão divertida quanto a gravação dos vocais de "Brasil é o País do suingue". Basicamente todos os nomes que contribuíram no disco falam no documentário de quase 90 minutos. Além da música, tem os bastidores das fotos do projeto - incluindo o nu tão comentado à época - e muita cena de show. Em tudo, Fernanda mostra que sabia o que queria mostrar, com quem queria contar e onde queria chegar.

O conjunto filme e livro revelam também um esforço de fazer esse disco ser reavaliado sob a perspectiva do tempo. O discurso de um País partido entre morro e asfalto, beleza e medo, festa e alienação, avanço e atraso não envelheceu (infelizmente). O livro mergulha nessa antítese de forma mais teórica, enquanto o filme vai alinhando referências ao mesmo tempo que diverte.

"Da Lata" nasceu moderno no som, ao mesmo tempo que é internacional em sua brasilidade. Ser lançado em suportes físicos (livro e vinil) leva a uma reflexão sobre as mudanças nos modos de produção musical. Hoje parece absurdo e até inútil chamar tanta gente para estar presente de corpo e alma dentro de um estúdio para gastar horas pensando nos detalhes de uma música (Will Mowatt passou dois meses morando no Brasil para cuidar do projeto). Liminha é sincero em dizer que não tem mais a paciência de buscar o resultado orgânico, preferindo a tecnologia para resolver pequenos problemas. Em tempos de feats pensados em resultados numéricos, afinadores digitais e inteligência artificial, o elemento humano empregado por Fernanda pode parecer antiquado. Mas é justamente o volume de humanidade que faz de "Da Lata" um álbum importante para a música brasileira. Um clássico, como se diz.

Foto do Marcos Sampaio

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