O jornalista Eliomar de Lima escreve sobre política, economia e assuntos cotidianos na coluna e no Blog que levam seu nome. Responsável por flashes diários na rádio O POVO/CBN e na CBN Cariri.
O jornalista Eliomar de Lima escreve sobre política, economia e assuntos cotidianos na coluna e no Blog que levam seu nome. Responsável por flashes diários na rádio O POVO/CBN e na CBN Cariri.
O site UOL publicou uma reportagem sobre o impacto do novo Bolsa Família na vida de algumas famílias pobres. A jovem Marcia Maria da Silva, com seis filhos, é uma das entrevistadas. Ela conta que, até há pouco, sua família vivia em estado de grande insegurança alimentar, em função da falta de recursos para adquirir os alimentos necessários. Com os valores ajustados do Bolsa Família, ela agora está podendo comprar peixes e carnes vermelhas, além de fraldas para o bebê.
uma história bonita, que deveria deixar todo ser humano normal feliz, sabendo que, pelo menos nesse caso, o dinheiro dos impostos está indo para quem precisa.
Há tempos a direita perdeu o debate sobre o Bolsa Família, por razões muito objetivas: é um programa extremamente eficaz no combate à insegurança alimentar, movimenta a economia e não produz nenhum desincentivo ao trabalho. Há estudos abundantes sobre isso.
A ajuda do Estado aos mais pobres não é uma novidade. As famosas Poor Laws, ou Leis dos Pobres, foram criadas na Inglaterra em 1536. Sem ir tão longe, os Estados Unidos até hoje gastam quase 60 bilhões de dólares por ano com ajudas financeiras diretas a mais de 40 milhões de americanos, através do programa conhecido outrora como Food Stamps, iniciado nos anos 30, por Franklin D. Roosevelt.
Nos anos 60, o ultraliberal Milton Friedman, espertamente, introduziu elementos de ajuda social em seu livro mais famoso, Capitalismo e Liberdade, através do chamado “imposto negativo”, um sistema tributário no qual os mais pobres, ao invés de pagarem impostos, receberiam algum dinheiro do Estado. Por essa razão, até hoje, alguns críticos de programas de transferência de renda falam que estes foram inventados por neoliberais.
Ora, Friedman era um ultraliberal, mas um homem extremamente inteligente e racional. Não defendo praticamente nenhuma de suas ideias econômicas, mas li o seu livro e entendi seus pontos-de-vista. Ele tenta construir uma economia funcional. Ultraliberal, ultracapitalista, mas funcional. Para isso, seria necessário um programa de transferência de renda. Não significa, todavia, que ele tenha inventado isso, tampouco que seja uma medida neoliberal. Friedman, assim como Hayek, outro pioneiro do ultraliberalismo, também defendiam ensino público e gratuito para crianças. Foi também o liberalismo que inventou a escola pública?
Digo tudo isso para abordar um caso meio chocante. Um jovem que se autoidentifica como trabalhista, nacionalista e desenvolvimentista, tem tentado “lacrar” na internet com opiniões polêmicas. Recentemente, por ocasião do aniversário do golpe de 1964, ele passou a defender ferozmente o legado da ditadura, que, segundo ele, teria implementado o “trabalhismo científico”. A explicação dele é que algumas leis trabalhistas teriam sido consolidadas na ditadura.
A tentativa de justificar uma ditadura reacionária com exemplos de programas realizados não é uma coisa nova. De vez em quando topamos com inocentes úteis que defendem o legado de Hitler, com histórias do sucesso econômico do regime nazista. “Hitler fez trens”, lembram. Outros lembram que o nazismo igualmente pôs fim à inflação e ao desemprego no país. De fato.
Com a ditadura militar, é a mesma coisa. Um regime que durou 21 anos precisava cuidar da economia. E cuidou. Houve momentos de crescimento econômico impressionante no período.
Entretanto, a que custo? A ditadura militar brasileira foi, essencialmente, um regime oligárquico, entreguista e antipobre. A prova disso é a destruição da educação pública nacional.
O processo de industrialização da ditadura, que segundo alguns integra um suposto período “desenvolvimentista”, iniciado com Vargas, em 1930, e que teria se estendido até a década de 80, deve ser revisto à luz de tudo que veio depois. A desindustrialização que assistimos a partir da redemocratização não deve ser atribuída somente a falhas dos governos democráticos, mas sobretudo à ruína do modelo entreguista, antinacional e oligárquico herdado da ditadura militar.
Enquanto nossos militares desmontavam nossas linhas férreas, o Japão cortava o país com trens e iniciava os estudos com trem-bala, sob olhar atento e enciumado da China, que seguiria o mesmo caminho algum tempo depois, assim que conseguiu reunir recursos para tal.
Enquanto o ensino público e estatal era virtualmente abandonado pelo poder público militar, a China promovia uma revolução no ensino, introduzindo métodos inovadores para alfabetizar seu povo. O resultado disso seria visto alguns anos depois, em meados da década de 70, quando as imensas massas chinesas educadas poderão ser incorporadas aos novos setores industriais criados em áreas especiais do país.
E agora, o mesmo “trabalhista científico” veio causar na internet com ataques à moça mencionada no início do post, a mãe de seis filhos, que está conseguindo agora alimentar melhor a si e às suas crianças, com os R$ 1.200 que passou a receber do novo Bolsa Família.
Numa série de mensagens extremamente agressivas, ele diz que a situação é um “tapa na cara” de quem trabalha, e destila uma série de preconceitos nas respostas às críticas que recebeu.
O ponto que chama atenção de todos, contudo, é que o jovem não é um caso isolado. Ele compõe um grupo crescente, que vem se proliferando à sombra de Aldo Rebelo, o candidato ao Senado pelo PDT, que andava para cima e para baixo com o então candidato Ciro Gomes. A maioria deles, a propósito, são apoiadores de Ciro, cuja campanha derivou para uma estratégia tão raivosa, ressentida e antipetista, que atraiu esse tipo de eleitor.
Então essa é a raíz do problema.
Não se trata apenas do “trabalhista científico” que odeia o Bolsa Família, idolatra Putin e lamenta a “decadência ocidental” (sim, a mesma figura também esposa essas ideias, as mesmas do Nova Resistência, grupo neofascista com quem ele mais interage nas redes). Esses casos singulares, desde que se mantenham isolados, sem representação política importante, não contaminam o corpo social do país. Infelizmente não é o caso. O cirismo ressentido, reacionário, lacerdista, talvez seja um problema. Ainda é pequeno, quase insignificante, mas um vírus também é.
O silêncio hostil de Ciro Gomes, ignorando a emergência desse tipo de pensamento junto a seus próprios eleitores, é visto como um sinal tácito de apoio. Alguns quadros e militantes do PDT tentam combater esse movimento, mas com muita dificuldade. Afinal, não foi o próprio partido que jogou tanto dinheiro na campanha de Ciro Gomes? Não foi o PDT que escolheu Aldo Rebelo e Cabo Daciolo como representantes do “trabalhismo” em 2022? O próprio PDT, portanto, criou os corvos que hoje lhe comem os olhos. Sim, porque a medida que o PDT se aproxima do PT, apoiando Lula no segundo turno e, em seguida, ingressando no governo, através do ministério da Previdência social, essas alas reacionárias do cirismo passam a atacar ferozmente o próprio partido.
De qualquer forma, é importante deixar claro. O Bolsa Família não é um programa liberal. Muito pelo contrário. Robert Dahl, um dos maiores teóricos em democracia do mundo, sempre explica que não há “regime puro” no mundo. Na vida real, todos os regimes são híbridos, tanto na política como na economia. As chamadas democracias liberais misturam elementos oligárquicos e plutocracia. Uma nação socialista, como a China, incorporou muitos elementos capitalistas em seu regime econômico.
O Bolsa Família, assim como o SUS, a educação pública, os bancos estatais e de desenvolvimento, são elementos socialistas e desenvolvimentistas incrustados no regime capitalista brasileiro.
Sim, Bolsa Família é socialista e desenvolvimentista, porque investir em desenvolvimento não é só construir fábrica de cimento, mas também alimentar bem as crianças e jovens do país, que serão os operários, engenheiros e administradores das indústrias, além de profissionais liberais, pensadores e lideranças políticas. Fidel Castro, Che Guevara, Lenin, Getúlio tiveram famílias que os alimentaram e educaram muito bem. Passar fome e viver na miséria nunca ajudou ninguém a se tornar revolucionário ou desenvolvimentista.
Considerando que o futuro do desenvolvimento está nas indústrias mais avançadas, como aquelas ligadas a biotecnologia, tecnologia espacial e inteligência artificial, é duro saber que ainda há pessoas que ignoram a necessidade de que, para formar uma classe trabalhadora capaz de se integrar a esses setores, é preciso antes de tudo alimentá-la bem!
Ademais, o pensamento do famigerado “trabalhista científico” flerta com um eugenismo fascista, pois hoje todo mundo com um mínimo conhecimento sobre nutrição e biologia sabe que uma criança precisa ser muito bem alimentada, sobretudo na primeira infância, para que possa desenvolver plenamente suas capacidades cognitivas.
Esses movimentos pretensamente “nacionalistas”, mas que parecem odiar tudo relacionado à vida real, concreta, dos brasileiros, que tratam a cultura popular, como o funk, com preconceito elitista, são espuma do mesmo esgoto que gerou o bolsonarismo. São falsos nacionalistas. Seu ódio irracional e exagerado ao “liberalismo”, na realidade, é apenas ódio à democracia. Sua hostilidade à esquerda organizada, a esquerda do mundo real, que trabalha nos movimentos sociais, que ganha eleições e, que, mesmo cometendo erros e fazendo concessões, muda a vida das pessoas, é apenas ressentimento de fracassados. Suas ridículas teorias de conspiração, algumas flertando com antissemitismo, como as histórias sobre Soros e globalismo, provam que essse movimentos bebem nas mesmas fontes que a extrema-direita.
A fragorosa derrota do Ciro Gomes em 2022, que não se limitou apenas aos humilhantes 3% de votos no primeiro turno, mas também ao desempenho pífio de todos os candidatos ao legislativo que se aproximaram dele, foi um recado das urnas contra esse tipo de pensamento.
O povo brasileiro não apenas derrotou Bolsonaro. Ele derrotou sobretudo as ideias, os valores, os preconceitos que produziram o bolsonarismo.
É sempre importante lembrar isso: o bolsonarismo perdeu as eleições em 2022. É fundamental saber ganhar, ou seja, interpretar a vitória com humildade e sabedoria, mas isso não pode significar, jamais, diminuir o significado profundo, histórico, da vitória política e eleitoral que experimentamos no ano passado, contra a extrema-direita, o fascismo e o negacionismo científico.
O bolsonarismo segue vivo, todavia, e qualquer movimento baseado em ódio a Lula, ao PT e à esquerda de maneira geral, poderá receber recursos, audiência, apoio, de amplos setores reacionários. Esses setores ressentidos e amargurados do cirismo, que parecem ainda não terem se recuperado emocionalmente da derrota que sofreram em 2022, tentam um movimento perigoso, igualmente destinado ao fracasso, que é continuar procurando “pontes” com a extrema-direita, seja através de um nacionalismo de perfumaria, seja partilhando de preconceitos contra minorias (em especial contra os mais vulneráveis e atacados, os LGBTQI+).
Não me parece uma ideia promissora, para um movimento que se identifica como “trabalhista”, ou coisa que o valha, se juntar à direita tentando conquistar seu voto. O que vai acontecer, fatalmente, e o que já está acontecendo, é exatamente o contrário. A direita brasileira, muito mais forte, muito mais encorpada, engolirá esse movimento como uma baleia engole um pequeno cardume de sardinhas.
Miguel do Rosário é jornalista
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