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Tem os outros
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Escreve sobre política, seus bastidores e desdobramentos na vida do cidadão comum. Já foi repórter de Política, editor-adjunto da área, editor-executivo de Cotidiano, editor-executivo do O POVO Online e coordenador de conteúdo digital. Atualmente é editor-chefe de Política e colunista

Érico Firmo política

Tem os outros

Proposta do governador Camilo Santana de punir quem recusar vacina é atestado de retrocesso, mas é melhor que permitir que indivíduos decidam expor outras pessoas ao perigo
Tipo Opinião
Vacinação contra Covid-19: servidores que se recusarem poderão ser punidos (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Vacinação contra Covid-19: servidores que se recusarem poderão ser punidos

Quando crianças têm vez por outra rompantes de egoísmo e querem algo só para si — um doce, um brinquedo, a vez no parquinho — há um clássico dos ensinamentos populares: "Tem os outros". A frase, geralmente num tom algo embrutecido, demarca um princípio civilizatório que se deve começar a aprender na primeira infância e nunca mais parar. Não dá para comer toda a sobremesa e não deixar para mais ninguém. Não se pode ir dez vezes seguidas no brinquedo no parque sem dar lugar aos demais. Não se pode ouvir música a altura indiscriminada sem considerar que pessoas nas redondezas podem se incomodar. O que faz de nós uma sociedade e não apenas um conjunto de indivíduos separados é o fato de que não podemos agir ignorando os outros. Os atos têm consequências mútuas. É outra lição que se aprende quando menino: meu direito termina onde começa o do outro. Talvez dizer que meu direito se transforma em contato com o outro seja mais preciso que delimitar seu fim.

Sanções e restrições a quem não se vacina já existem no ordenamento jurídico. Para viajar a países como Austrália, Colômbia ou África do Sul, entre muitos outros, é necessário comprovar vacinação contra febre amarela. Aliás, em 2017, quando houve surto no Brasil, fiz uma viagem pelo interior da Bahia e de Minas Gerais e também era necessária a vacinação.

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que ninguém poderá ser vacinado à força. Correta posição. Porém, confirmou que sanções podem, sim, ser aplicadas a quem recusar imunização. Há possibilidade de demissão por justa causa.

Já existem, inclusive, restrições previstas em lei anteriores à pandemia. Por exemplo, desde julho de 2019 há lei em vigor no Ceará que obriga apresentação de carteirinha de vacinação atualizada para se matricular nas escolas públicas estaduais. Nos Estados Unidos e na Alemanha, mais restrições têm sido criadas.

O próprio presidente Jair Bolsonaro já demonstrou entender que restrições são impostas no mundo todo e se submete a elas. "Eu vou tomar vacina que eu possa entrar no mundo todo. Eu não posso tomar essa vacina lá de São Paulo, que não está aceita na Europa nem nos Estados Unidos. Eu viajo o mundo todo e tenho que tomar a específica aceita no mundo todo", disse ele em 4 de agosto, reconhecendo que em alguns casos não basta nem mesmo tomar qualquer vacina, mas sendo necessária para ele "a específica aceita no mundo todo". Bolsonaro, a propósito, sancionou lei em fevereiro do ano passado, a 13.979, que permite a vacinação compulsória.

Retrocesso

Não acredito que nem punir muito menos obrigar sejam o melhor caminho numa campanha de vacinação. Em cinco décadas de Plano Nacional de Imunização (PNI), nunca foi necessário se chegar a isso. No começo do século XX, a Revolta da Vacina foi resultado, sim, da ignorância, mas também de autoritarismo higienista. Creio que o caminho mais adequado é o esclarecimento, a informação, a educação.

Porém, numa coisa sem precedentes, talvez única no Ocidente, um chefe de Estado brasileiro faz campanha anti-vacina. As mensagens à população são contraditórias desde cima. Pela primeira vez, não há recado coeso. Lamentavelmente, o Brasil pode enveredar por um caminho conflituoso.

A proposta do governador Camilo Santana (PT) de punir servidores que recusarem vacina é um atestado de que retrocedemos como sociedade. O que se haveria de fazer? Permitir que agentes públicos coloquem colegas e população em perigo?

Entre as liberdades individuais não está o direito de contaminar a população e disseminar doenças. Deixar de se vacinar não é questão pessoal. É egoísmo, expor as pessoas a risco. Nossos direitos como indivíduos não nos autorizam a agir como se não houvesse mais ninguém no mundo e nossos atos não os afetassem.

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