Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
A ideia não era ir a Ouro Preto. A bem da verdade, a ideia não era nada. José Carlos e eu gostaríamos apenas de um lugar para dormir em Belo Horizonte, que estava bastante fria naquele setembro de 1980. Acabáramos de chegar à capital mineira e o contato que eu tinha na cidade não resultou em possibilidade de hospedagem.
Procuramos a rodoviária com a intenção de encontrar um lugar aquecido e protegido onde pudéssemos passar a noite. O sol estava se pondo e naquele fim de tarde as nossas expectativas também escureciam. Descobrimos que a rodoviária fechava às 22 horas e que só era permitido ficar ali quem tivesse bilhete comprado para viajar bem cedo no dia seguinte.
Das empresas de ônibus que estavam com guichê aberto, a passagem mais barata que encontramos foi para Ouro Preto. Mesmo assim, só conseguimos o consentimento para dormir na área de embarque e desembarque. Embora cada um de nós tivesse apenas uma mochila, passamos a noite toda nos revezando entre dormir e ficar de vigília.
Em Ouro Preto ficamos sentados na Praça Tiradentes, entre o deslumbre com tanta beleza histórica e o desânimo por não saber bem o que fazer. Resolvemos procurar o restaurante universitário. O José Carlos fazia faculdade e tinha carteirinha da Unifor, mas eu estava apenas com a minha identidade da Escola Técnica Federal do Ceará, onde havia concluído o ensino médio.
Em todo caso fizemos a refeição no RU, após conversarmos com alguns estudantes e eles demonstrarem interesse na proposta de cooperativismo literário que andávamos divulgando pelo Brasil. Desse almoço surgiram dois convites: um para ficarmos hospedados em uma república de estudantes e outro para um debate sobre produção alternativa na Escola de Minas.
O bate-papo teve um bom início, tanto que dois meses depois eles nos enviaram pelo correio o exemplar nº 3 do jornal Espaço Cultural (Nov/1980) com uma matéria sobre as movimentações da nossa Cooperativa de Escritores e Poetas (CEP). Entretanto, o que seria um encontro poético degringolou para uma discussão acirrada em virtude da resistência masculina ante os avanços femininos nos espaços das repúblicas estudantis.
No momento em que as hostilidades tomaram o rumo do insulto, intervimos em favor das meninas, gesto que produziu inesperados olhares taciturnos. Peguei um saco de pão, do projeto Poesia Livre, em que o poeta ouro-pretense Guilherme Mansur divulgava versos marginais brasileiros, e li uma poesia. Estava ali diante do "macho pós-tudo", de Patt Raider (Karlos Chapul): "somos omens / contemporânews / por isto / só usamos na / ora h".
A temperatura estava em torno de 12ºC. Fomos convidados a nos aquecer na casa onde ficava a república Koxixo, que só tinha residentes mulheres (ao escrever esse texto procurei o perfil dessa república no Instagram e lá está escrito que ela funciona desde 1982, quando estou falando de 1980, e não sei explicar isso). Elas nos deram de presente um cartaz com ornamentação de figuras femininas em preto e branco e um poema em espanhol, que em tradução livre dizia assim:
"Sou mulher / E tu és homem, / E repito: / Sou mulher / Com muito orgulho e graça / Com muito ritmo, / E tens de ver / Que por ser mulher / E tu homem / Eu te respeito / E tu me respeitas, / Te sinto / E me sentes, / Te olho / E me olhas, / Com simplicidade e doçura / Com desejo e amor / Com paixão e sentimento. / Sou mulher / E por isso, / Respeitando o meu corpo / Cultivando a minha mente / Elevando o meu espírito, / Eu te respeito / Te sinto / Te olho / E te amo / Através da tua pele / Através dos teus olhos / Da tua boca e do teu ser". No ano seguinte entrei na UFC e, com frequência, deparei com este poema anônimo nos eventos da vida universitária.
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