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O parâmetro José Mujica
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

O parâmetro José Mujica

Mujica era um não-especialista, alguém que aprendeu a alargar, e não a estreitar os espaços de travessia na aventura do viver
Tipo Crônica
 José Mujica, ex-presidente do Uruguai (2010-2015)  (Foto: EITAN ABRAMOVICH / AFP)
Foto: EITAN ABRAMOVICH / AFP José Mujica, ex-presidente do Uruguai (2010-2015)

No dia 13 de maio deste 2025, o que predominou entre os grafismos digitais e físicos das mídias foi a informação de que morrera naquela data o "presidente mais pobre do mundo", em uma aparente falta de compreensão de que a importância de José Mujica (1935 - 2025), ex-chefe do Poder Executivo uruguaio (2010 a 2015), não estava no que constituía seus bens e valores econômicos.

A repetição irrefletida de classificações reducionistas como esta é um dos fatores comuns à anticultura prevalecente em um tempo de significados em crise. O mundo contemporâneo encontrou nos conflitos de fragmentação e na tensão dos extremos um jeito despojado de efetivar o seu desespero relacional e existencial, gerador de sofrimento psíquico na coletividade.

Esse tipo de procedimento influenciado pelo pensamento modelador, quando aplicado insistentemente em situações como a viagem de volta de José Mujica, salta aos olhos, uma vez que o referente tem como força legendária uma grandeza orgânica que o levou a escapar da impregnação da busca ansiosa pelo que não se precisa para tornar-se um parâmetro de saudável experiência humana.

O parâmetro José Mujica é um ponto de referência, um princípio balizador e um modo de contemplar variáveis da realidade vivida, sem que dele se necessite ser discípulo ou cópia, até porque ele, nem ninguém, é replicável. Mas, ao esgarçar as possibilidades da satisfação de viver com simplicidade, de amar o cheiro da terra e a força do encanto das flores, ele mostrou que o sonho pode ser uma prática.

Mujica era um não-especialista, alguém que aprendeu a alargar, e não a estreitar os espaços de travessia na aventura do viver. Com espírito sempre disponível, teve uma conduta integrativa corrente, em que aproveitou encontros e reencontros com o silêncio no curso do mundo para descobrir que, mais do que a história, o que conta é o que se aprende com ela.

Não, José Mujica não era pobre; sabiamente ele tinha a "bagagem leve", para que as coisas ou os privilégios não roubassem seu destino. Evitava gastar dinheiro com o que não precisava, porque, como dizia, "não é com dinheiro que se faz compras, mas com o tempo de vida que se gasta para ter esse dinheiro". Ademais, a natureza também se gasta quando o consumismo gera materiais indesejados, e isso ele sintetizava dizendo que "a natureza não produz lixo".

Como parâmetro de respeito ao outro, a riqueza de Mujica esteve atuante no governo uruguaio quando, mesmo entendendo que a agenda social não deve ser internalizada na estrutura governamental, respondeu a essas pautas, tirando consumidores das mãos do narcotráfico ao legalizar a maconha, facilitando a integração da vida social homoafetiva com o direito ao matrimônio LGBTQIA e proporcionando legalmente que mulheres abortassem nos primeiros meses de gestação como questão de saúde pública.

Refutava o neocolonialismo intelectual, do tipo que transfere para as pessoas mais simples a responsabilidade pelos avanços do conservadorismo. Defendia o direito do povo de se equivocar e de ter na política pessoas que não fizessem dos cargos públicos um negócio. "A política não deveria ser uma profissão da qual você ganha a vida; deveria ser uma paixão pela qual você vive".

Por sua história de luta social, quando presidente, José Mujica chegou a ser citado como candidato ao Nobel da Paz, mas afirmou que já se considerava ganhador do maior prêmio dessa categoria. "No meu país eu caminho pela rua e vou comer em qualquer bar sem essa parafernália de gente de Estado". Simples assim.

 

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