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A escalada genocida
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

A escalada genocida

Lutas, conflitos, batalhas e guerras com chance de defesa sempre existiram na história
Tipo Crônica
Registro da Faixa de Gaza (Foto: Eyad BABA / AFP) (Foto: Eyad BABA/AFP)
Foto: Eyad BABA/AFP Registro da Faixa de Gaza (Foto: Eyad BABA / AFP)

Dos crimes de guerra da atualidade, o genocídio em Gaza, praticado pelo governo de Israel e seus colaboradores, é o mais emblemático enquanto evolução da ideia de levar a efeito assassinatos em massa como política de extermínio, desenvolvida por europeus no século XIX sob a alegação de que a dizimação de povos indesejáveis era um subproduto inevitável do progresso.

Atrocidades de toda ordem foram praticadas de modo bastante uniforme pelos colonizadores para, com os avanços da produção mecanizada e após o fim do sistema escravocrata naquele século, explorar os povos originários do resto do mundo, eliminando os que se mostrassem inadequados na obtenção de matérias-primas com baixo custo fora de seus territórios pobres em recursos naturais.

É sobre isso que trata o livro "Exterminem todos os malditos - uma viagem ao Coração das Trevas e à origem do genocídio europeu" (Fósforo, 2023), do historiador literário sueco Sven Lindqvist (1932 - 2019). O autor viajou por algumas regiões da África e teve uma experiência presencial lastreada por referências literárias sobre o continente, em especial com o livro "Coração das Trevas", de Joseph Conrad (1857 - 1924), escritor inglês de ascendência ucraniano-polonesa.

O império britânico da rainha Vitória (1819 - 1901) liderava o discurso de civilizar para se expandir com crueldade. O autor cita com fartura filósofos, escritores e pensadores que, "com o coração cheio de bondade", contribuíram para a formação do racismo e da ideia de varrer as 'raças inferiores' da África, das Américas, da Austrália e das ilhas do Pacífico, terras dos malditos povos escuros.

Lutas, conflitos, batalhas e guerras com chance de defesa sempre existiram na história. O diferencial europeu foi a invenção da morte em grande escala, a partir do uso de canhões e metralhadoras em suas expedições militares. Essa condição de matar à distância nativos que sequer viam quem os estava dizimando, como "inimigos invisíveis", foi identificada por Lindqvist como uma regra imperial: "Os negros não têm canhões e, portanto, não têm direitos".

Os fundamentos das culturas africanas, sua noção de tempo, o nomadismo em um continente rico e variado, entre outros, ficaram em último plano diante do que Sven Lindqvist realça como soberba racista de muitos europeus que passaram a acreditar que a superioridade militar implicava também uma superioridade intelectual e até mesmo biológica, e que isso garantia "o direito de aniquilar o inimigo", mesmo quando este não tivesse como se defender.

O autor reflete que o extermínio colonial no continente africano foi o grande laboratório para genocídios, alguns detalhados no livro, inclusive os que passaram a ocorrer no próprio continente europeu e em seus vizinhos, como o caso do Holocausto, na Segunda Guerra (1939 - 1945): "Auschwitz foi a aplicação industrial e moderna do extermínio".

O olhar aguçado de Lindqvist alerta que "as forças de extinção continuam a trabalhar. Nos séculos mais recentes, pessoas civilizadas avançaram sobre o globo terrestre e empurraram diferentes espécies uma atrás da outra rumo ao abismo". Assim, ele resume a vitória de uma 'civilização' que pressupõe a escalada do genocídio como uma necessidade para o progresso.

Em "Exterminem todos os malditos", Sven Lindqvist é desconcertantemente assertivo: "Não é conhecimento o que nos falta. O que nos falta é coragem de olhar para aquilo que sabemos e tirar conclusões". Se estivesse vivo, certamente diria que, hoje, o "coração das trevas" é Gaza.

 


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