
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
O letreiro maiúsculo fixado na fachada do antigo mausoléu do presidente cearense da ditadura, em Fortaleza, sinaliza que a palavra que cai melhor como referência visual pública para uma galeria no Palácio da Abolição é "Liberdade". Em princípio, a escolha desse termo é bem coerente com o espaço em si e com a necessidade de retomada do seu significado emancipatório, que vem sendo pilhado na cena global por defensores do libertarianismo e sua fúria de destruição de direitos sociais e da natureza.
Há, no entanto, alguns pontos que mereceriam ser considerados antes da inauguração desse espaço tão relevante. O primeiro deles foi levantado pelo arquiteto José Hissa e repercutido na coluna do jornalista Jocélio Leal, neste O POVO (23/5/2025, página 13). Hissa entende que "a inserção do imenso vocábulo colado na fachada do Mausoléu agride, de forma desastrosa, o arrojado balanço da obra do arquiteto Sergio Bernardes". E é mesmo uma interferência prejudicial à percepção da beleza da estrutura de um dos palácios governamentais mais bonitos do Brasil.
Tombado em 2004 como patrimônio cultural do Ceará, com grande importância para a arquitetura moderna brasileira, o complexo arquitetônico do Palácio da Abolição une verde e cimento, solidez de jacarandá e passagem de vento e um atirado vão livre de 30 metros sobre um espelho d´água, com praça escavada e piso irregular de dormentes, aquelas peças de madeira utilizadas como suporte nas vias de trens e metrôs. Talvez esse tamanho exagerado do letreiro tenha sido cometido na ânsia legítima de revalorização da palavra "Liberdade".
Refletir nos espaços públicos crenças contextuais do tempo político é um recurso historicamente recorrido como orientação da memória social. O contraste estético pode até somar, quando executado sem interferência direta no monumento. O que aconteceria se o que está sendo feito no Palácio da Abolição fosse aplicado na arquitetura também moderna do Palácio do Planalto, em Brasília, sede da Presidência da República, sufocando seus traços horizontais que alinham curvas e retas? Ou mesmo nos palácios de estilo eclético, como o Palácio Piratini, em Porto Alegre, e o Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo?
O aproveitamento desse espaço tão peculiar do palácio do governo estadual com o intuito de potencializar a afrocearensidade e seus vínculos com o restante do País, com a África e com a diáspora negra, é de grande relevância, tendo em conta sobretudo o fato de o Ceará ter sido a primeira província brasileira a formalizar a libertação de escravizados, em 1884; feito que o levou a ser chamado de "Terra da Luz", embora ainda seja um lugar marcado por preconceitos, discriminações e racismo.
Contudo, há outro ponto que me parece não recomendar o nome "Liberdade" para a galeria de rua do Palácio da Abolição, que é o risco que esse espaço corre de ter seu propósito facilmente deturpado em um eventual governo que pregue a "liberdade" como mobilização para golpes de estado e para a destruição de direitos associados à justiça social e à democracia. Nessa hipótese indesejada, para o funcionamento da Galeria da Liberdade bastaria uma mudança curatorial.
Por isso, seu nome poderia ser mais objetivo e mais difícil de ser alterado. Algo como "Galeria 1884", em alusão direta à Data Magna; "Galeria Afrobrasileira", para a promoção do diálogo com a África; ou mesmo "Galeria Afrocearense", se a intenção for criar um espaço que possa contribuir para de fato o Ceará se tornar a "Terra da Luz". Ainda dá tempo!
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