
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Foi uma surpresa para mim a atitude do meu pai de me dar um relógio de presente. Pela vida que ele levava, de ser integrado à natureza, a última coisa que eu imaginava era que ele fosse comprar um relógio de pulso para mim. Tempos depois dei-me conta de que aquele objeto talvez representasse para ele um símbolo da minha mudança de ciclo etário. Eu já era um rapazinho, e, para o meu pai, andar de relógio combinaria com o bigode que havia começado a se anunciar em meu rosto.
Era um relógio bem bonito, todo preto, com suaves indicadores de discretos traços verdes que davam a posição do tempo no mostrador enquanto os ponteiros passavam. Apreciei o presente somente com o olhar e, sem estender a mão para recebê-lo, dirigi-me ao meu pai e falei que não precisava de um relógio. Eu não sabia explicar com palavras a minha recusa, mas percebi que ele compreendeu que, se passasse a usar um relógio, aquele aparelho acabaria atrapalhando a minha maneira de ver a vida.
A educação que recebi do meu pai não foi moralizadora, mas voltada para o hábito de pensar até mesmo sobre as coisas mais simples, como o que um relógio poderia interferir no que eu seria. Se aquele objeto assinalaria o meu tempo, ele influenciaria também o ritmo do meu viver, que, por sua vez, estaria marcando a minha razão de existir, que poderia sugestionar o que eu deveria fazer e, por conseguinte, orientaria o que eu iria pensar, determinando assim a minha maneira de encarar o cotidiano e os movimentos do mundo, reduzindo a minha existência à marcação das horas.
Os pensamentos iam, vinham e se aqueciam em nossa conversa sem relações de tempo, sem comparar as nossas idades, sem a medida das distâncias percorridas por cada um de nós; apenas como quem faz arte, tremula estandarte no giro da Terra, no bilro de Marte, na parte, no todo, na renda de capucho de algodão, berro de bode, de ovelha com lã banhada em xampu de juá, ovo de camaleão nas tocas de aluvião do rio Cupim, travessia sem fim na transversal do nosso papo sem tempo pelo meio.
Era raro vê-lo usando relógio. Passava a maior parte do tempo na labuta, cuidando dos animais, fazendo cercas, plantando, colhendo e criando esculturas circulares. Vivia praticamente campo, onde não cabia relógio, onde as horas não faziam sentido, nem a espera pelo que não ficou de passar. A hora na natureza não é marcada, é acontecida, sentida, observada, chovida, molhada, ressecada, candente, brotante, arborescente, afetiva e efetiva, imensurável.
Quando ele disse que me entendia, mesmo sem que eu precisasse argumentar, contemplei sua fisionomia, seu gesto, e vi que não havia decepção ou espanto; ele estava contente com a minha sinceridade, com o sinal que nos conectava ao tempo do chão, à explosão das flores desabrochando, das minhocas chamando o solo para respirar, da intensidade flutuante da alma e suas causas inventoras de expressividade em cantos e recantos onde a singularidade encontra o múltiplo para ser possibilidade.
O relógio em suas mãos virou metáfora de amor e de perenidade. Estava ali, diante de nós, e não estávamos sós, naquela rejeição que selou nossa confiança. Os ponteiros se mexiam, mas se perderam ao tentar aferir o teor da nossa fabulação. Escapamos de uma hipotética acusação de falsa desatenção pela consideração sensível e densa da manifestação do que se quer, pondo à mostra o que não é razoável acontecer. Ele colocou o relógio no bolso, me deu um abraço, e senti a marcação dos nossos pensamentos dispensando a marcação do relógio.
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