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Para ler o novo Pato Donald
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Para ler o novo Pato Donald

Tipo Crônica

Os embaixadores do reino sem nome devem estar revoltados. Perderam a excitante função de articuladores de golpes de Estado nos países onde atuam. O imperador tomou para si essa voluptuosa tarefa e passou a promover ditadura direta no que considera seus domínios. Duckburg (Patópolis), como nas histórias em quadrinhos é chamada a metrópole dos patos, está em crise, e, para o soberano, é preciso espremer mais as nações subjugadas para que paguem por isso.

A forma que o monarca utiliza para demonstrar seu poder é a da sujidade. Transformando o planeta em um grande poleiro, defeca com frequência ordens pastosas e fedidas com vista a desestabilizar as instituições e a fertilizar o ambiente de desinformação, onde se nutrem os patos reborn domésticos. Esses bonecos têm aparência humana, mas se denunciam quando tentam voar mais alto e só conseguem enlamear o entorno com suas patas disfarçadas por silicone.

No século passado (XX), o império era mais jeitoso. Derrubava governos e patrocinava ditadores, mas sempre argumentando motivos democráticos, ao tempo que espalhava noções simpáticas ao modo de vida de Duckburg para as crianças dos territórios colonizados. Para isso, valia-se de um pato branco, chamado Donald, de voz grasnada, mal-humorado, impaciente, azarado e sempre com problemas financeiros, mas que vez por outra expressava generosidade e arrependimento.

O dramaturgo argentino Ariel Dorfman e o sociólogo belga Armand Mattelart abstraindo-se da notável qualidade estética das revistas do Pato Donald e de outros personagens difundidos com a mesma finalidade expansionista, estudaram a ideologia consumista e a naturalização das desigualdades e da subserviência econômica e cultural que havia por trás dessa produção, e publicaram o livro "Para ler o Pato Donald" (1971), no qual afirmam que o poder desse pato está na promoção do subdesenvolvimento.

Neste livro eles interpretam que, para o império, não deve haver sentimento de culpa na exploração dos povos subdesenvolvidos, e, quando estes não aceitam suas ordens, basta baixar-lhes as calças e lhes dar uma boa surra para que aprendam. Os autores revelam o subterfúgio do imperialismo de se apresentar como defensor da libertação dos povos oprimidos e como juiz imparcial de seus interesses. Em "Para ler o Pato Donald", eclode a necessidade de identificação do quanto o que se assimila na infância permanece em todos os extratos da realidade.

O mundo mudou e Duckburg tem um novo monarca. Controlador de corporações em diversos setores da economia, o novo Pato Donald investiu na política e apresenta-se como o imperador do planeta. Age corriqueiramente como tal, publicando decretos esdrúxulos e espalhando atos invasivos às soberanias de países em todos os continentes. Ególatra, irritadiço, agressivo, intempestivo, desvairado, petulante, arbitrário e sem qualquer sinal de vergonha pelo que faz, ele desatina e expele a todo instante pegajosas declarações falsas nos esgotos digitais das mídias.

Em se tratando de Pato Donald, pode-se dizer que o bico amarelo de um é o topete louro do outro, embora o anterior seja um agente estrategicamente empático e o atual seja um mandante impulsivamente desagradável. O imperador do reino sem nome tem uma diferença dos anteriores, que é a clareza de alucinação. Ele quer o mundo aos seus pés de pato e, com as nadadeiras econômicas e bélicas que tem entre os dedos, arrasta facilmente a pataquada reborn para o ninho dos traidores do próprio lugar de origem.

Foto do Flávio Paiva

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