
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Na Cidade do Cabo (Cape Town), África do Sul, há um bairro de casas coloridas que guarda uma história incrível entre suas cores, cheiros e sons. É o Bo-Kaap, o bairro muçulmano formado inicialmente por escravizados provenientes da Indonésia e da Malásia, nos séculos XVII e XVIII. A ocupação holandesa, não conseguindo subjugar os Khoisan que habitavam a região, valeu-se da Companhia das Índias Orientais para adquirir, como se máquinas fossem, pessoas que pudessem realizar a tarefa de implantação de um porto no local.
Na encosta do morro Signal Hill, os escravizados construíram as próprias moradias. Eram todas casas brancas, atendendo a uma exigência dos exploradores batavos, como forma de caracterizar aquela localidade como um território marginal. Como eles trabalhavam com referências de arquitetura e engenharia variadas, as casas passaram a ter aparências distintas.
Na caminhada a pé (free walking tour) que minha família e eu fizemos no último dia 10 pelo Bo-Kaap, achamos curiosa a peculiaridade das fachadas das casas, e o guia nos explicou que essa versatilidade estética funcionou como um portfólio que, no período após o fim da escravidão (1834), assegurou trabalho autônomo para aquelas pessoas na vida livre. Ter a casa bonita era, então, uma maneira objetiva de exibir a qualidade do que eram capazes de fazer.
A abolição permitiu que eles seguissem morando ali, mas pagando aluguel aos holandeses. Décadas depois os ex-escravizados e seus descendentes conseguiram comprar as próprias casas e as pintaram com cores intensas e variadas, o que permanece ainda hoje, no bairro residencial mais antigo e mais charmoso da cidade. Convém realçar que a comunidade muçulmana do Bo-Kaap teve a prática do islã proibida até a ocupação inglesa no final do século XVIII. Em nossa caminhada, vimos de perto a primeira mesquita construída no bairro, que é também a primeira da África do Sul. Sobre o arco da entrada está gravado em mármore: Auwal Masjid Established 1794.
Mesmo as outras mesquitas que não conseguimos observar de perto foram percebidas por nós através do eco dos minaretes e seus chamamentos à oração. A presença da cultura muçulmana é sentida ainda na voz das madraças, nas vestimentas das pessoas que moram no bairro, no cheiro agradável da apimentada comida e no som da música tradicional e contemporânea. Tudo isso contribui fortemente para a trama de culturas que é uma das grandes riquezas da Cidade do Cabo.
Nas ruas por onde transitamos, vez por outra deparamos com pinturas de melancias nas fachadas das casas, algumas delas juntamente com a inscrição Free Palestine. Em 1967, quando os israelenses tomaram a faixa de Gaza da Cisjordânia, a bandeira palestina passou a ser proibida na região. A saída criativa encontrada pelos palestinos foi usar imagens de melancia como símbolo, considerando que, quando partida, essa fruta apresenta as cores verde (casca), branco (entrecasca), vermelho (miolo) e preto (sementes). Embora a proibição tenha sido removida em 1994 com a criação da Autoridade Palestina, a figura da melancia permanece por sua potência representativa.
Com tantas histórias e tanta força religiosa e estética, o bairro Bo-Kaap é tombado como patrimônio cultural sul-africano. Circular por suas bem cuidadas ruas de pedra e entre casas coloridas vibrantes, atravessando o cotidiano do bairro em uma paisagem urbana sensorialmente encantadora, mais do que uma experiência turística, é uma maneira de nos tocar sobre o que temos a ver com essa herança cultural.
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