
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Na véspera do dia em que fomos conhecer o Cabo da Boa Esperança, dei uma passada no roteiro de lugares bonitos e especiais que visitaríamos. Entre a caminhada pelas livrarias, ateliês e restaurantes de Fish Hoek e o passeio pela Chapman's Peak Drive, considerada uma das estradas mais bonitas do mundo, estava uma visita dupla ao Cape Point e ao Cabo da Boa Esperança. Depois do pôr do sol, jantaríamos no V&A Waterfront, um complexo cultural e turístico criado com a revitalização da área portuária da Cidade do Cabo.
Fizemos tudo isso, mas nesse percurso acabei indo muito mais longe do que foi possível observar. Enxerguei-me menino, na aula de Geografia da dona Ozanira, com ela detalhando a importância do Cabo da Boa Esperança para as grandes navegações. Falava do perigo que era navegar por aquelas águas agitadas, com pedras submersas e vendavais que afundavam embarcações, a ponto de aquela passagem ter sido anteriormente chamada de Cabo das Tormentas.
Meus ouvidos não conseguiam escutar outra coisa, senão o som imaginário daquele penhasco que integra os acidentes geográficos onde se dá a confluência dos oceanos Atlântico e Índico no sul do continente africano. Ficava pensando no desespero dos navegantes quando se aproximavam do Cabo das Tormentas e sabiam que suas embarcações estavam prestes a serem tragadas por correntes imprevisíveis do mar revolto sob nuvens carregadas e monstros da tempestade.
Havia um certo alívio nas batidas do meu coração quando a dona Ozanira explicava que, apesar de tudo, a volta ao temível cabo sul africano fora dada em 1488 pelo explorador português Bartolomeu Dias (1450-1500) e que, dez anos depois, Vasco da Gama (1469-1524) fizera a viagem completa, de Portugal à Índia, passando pelo renomeado Cabo da Boa Esperança. Por quase quatro séculos, até a inauguração do Canal de Suez (1869) no Egito, essa foi a principal rota comercial marítima entre Europa e Ásia.
Em terra, pela janela do carro que nos conduzia ao longo da estreita península de aproximadamente 60 km de extensão, entre a Cidade do Cabo (Cape Town) e a ponta onde está fixado o marco do Cabo da Boa Esperança, babuínos travessos e uma ema elegante chamaram a minha atenção, e passei a apreciar a paisagem do Parque Nacional Montanha da Mesa (Table Mountain). Na zona sul do continente africano predominam montanhas com encostas íngremes e trechos costeiros que abrigam o bioma fynbos.
Chegamos a uma bifurcação. Para a esquerda teríamos o acesso a um funicular que nos levaria ao Cape Point, o topo da montanha, de onde se podem ver misturadas as águas dos dois oceanos e onde fica um velho farol (1859), há muito desativado porque, em vez de orientar, confundia os marinheiros no movimento das neblinas com os ventos. Fomos lá, mas antes entramos à direita e descemos ao recanto histórico onde está a placa que informa que ali é o Cape of Good Hope (Cabo da Boa Esperança).
Contemplei ao redor e senti-me novamente na aula da dona Ozanira imaginando tantos naufrágios ocorridos naquelas águas espumosas e esverdeadas chocando-se às rochas frias. Um deles, o mais marcante já registrado no Cabo das Tormentas, saltou ao meu pensamento. Foi o de São José Paquete d' África, embarcação portuguesa que afundou em 1794 com escravizados moçambicanos destinados ao Maranhão e que teve seus destroços identificados somente em 2014. Andei sobre as pedras até o ponto em que pude receber sobre o meu corpo os respingos da água salgada batendo no penhasco.
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