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Nas montanhas do Lesoto
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Nas montanhas do Lesoto

Tipo Crônica

Os sentimentos adquiridos no contato deslumbrante que tive com a imensidão nas montanhas do Lesoto reforçaram uma mania que tenho de perceber o mundo com perguntas sem interrogações. Enquanto os discretos sons de água em degelo lento e das mensagens dos pássaros ao vento enchiam o silêncio de grandiosidade, meus olhos agradeciam a claridade que me mostrava tanta beleza naquela paisagem seca e agradavelmente fria de agosto.

Pulsões emotivas foram sedimentadas à medida que o carro 4 x 4 Mahindra, de fabricação indiana, subiu os 3.240 metros de altitude até o topo incrivelmente plano das montanhas Drakensberg, que o povo nativo, da etnia soto, chama de Maloti. São vários estágios de beleza e de paradas, com escarpas íngremes polvilhadas de neve no alto e vales profundos ziguezagueados pela estrada e por cursos de água coordenados entre a natureza e a ação humana.

Subindo até a altitude de 1.544 metros em via asfaltada, cruzamos a fronteira da África do Sul, mas não entramos no território do Lesoto, o que deveria acontecer, haja vista que, sendo um enclave, o Reino do Lesoto faz fronteira com a África do Sul em todos os pontos cardeais. Essa estranha zona é atravessada por uma estrada de cascalho, estreita, cheia de curvas e muito inclinada (Sani Pass), pela qual, em nove quilômetros, subimos mais 1.332 metros de altitude até chegarmos ao posto fronteiriço do Lesoto. O sacolejo do carro é a "massagem africana", brinca o guia Frederico, do Malauí.

Esse percurso acrescenta uma boa liberação de adrenalina aos efeitos da natureza exuberante. O carro passa ao lado de cachoeiras com água congelada e pelo claro-escuro da neve nas rochas antes vistas como distantes, como se fôssemos esbarrar no azul do céu pintado em acrílica com feixes de luz esgarçando as bordas das nuvens. No lado oposto, a cavidade tubular da montanha, estendida longamente e muito abaixo, põe o pensamento em uma perspectiva de busca dos habitantes da Terra.

Em mais 400 metros de altitude, acessados por rodovia de concreto, veio o impacto do terreno plano no alto da cordilheira, com habitações circulares de pedra com teto de palha. O guia nos levou à casa da dona Belina, que nos ofereceu um delicioso pão boroto, tradicional da etnia soto, feito em panela de ferro sobre brasas e com a tampa coberta de pedras quentes. Falei para ela que gostaria de presentear as crianças da vila com um exemplar do meu livro "Brincadeira de Cantar", e ela chamou as mães com filhas e filhos.

Agachei-me e passei as páginas, apontando para as ilustrações feitas pelo Valber Benevides. Falei em português, e as crianças, em sesoto, como se fossem a mesma língua. As mães cantavam e tocavam percussão ao passo que eu, emocionado, notava que o preá Titico, protagonista da história, aconchegava nossos olhares e gestos. Somente depois descobri que as crianças estavam identificando ali um simpático conhecido da fauna local, o hírax-das-rochas, pequeno herbívoro de cor acastanhada e corpo arredondado, muito semelhante a um preá da Caatinga.

O Lesoto é o único país do mundo localizado totalmente a mais de 1000 metros de altitude, com 80% do território de 30.355 quilômetros quadrados em uma altitude acima de 1800 metros, e com 99% dos seus 2,3 milhões de habitantes pertencentes a uma mesma etnia: soto. Desci dessas montanhas sem resposta, mas com uma interrogação sobre quantos preás e hírax-das-rochas temos em comum no planeta - e que podem ser revelados por olhares infantis, independentemente de idioma.

Foto do Flávio Paiva

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