
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
A natureza rudemente tolerada no mundo urbano que prioriza o concreto e a impermeabilização é reflexo de uma dominância social lastreada por comportamentos de indiferença ao verde e à cultura matrística. Quem nasce e vive nas cidades tende a se enquadrar nas finalidades racionais de seu cotidiano instrumental e dificilmente consegue se conectar com os impulsos dos sentidos florestais.
A artista performática fortalezense Natália Coehl entrou na frequência do ponto de contato que vem da solidão das poucas árvores que restam nas metrópoles e, provida de uma emocionalidade crítica, descobriu que, com vivências estéticas e ritualísticas, conseguiria abrir portais de acesso à precedência da natureza nos espaços construídos por concentrações populacionais.
Queria provocar fissuras nos próprios corpo e estado de consciência, ambos concretados como fatos existenciais correntes, e fez isso produzindo uma energia transformadora resultante da experimentação de feitiços dramáticos que ela relata no livro "7 ritos de passagem de uma bruxa urbana: performances para germinar floresta em um corpo pavimentado" (Editora UECE, 2025), que assina como Natalia Lopes Coelho, seu nome civil.
Formada em teatro pelo IFCE, ela levou para as ruas expressões conceituais questionadoras, espirituosas e irônicas como exercício de subjetivação. Com uma performance pet, sentiu na pele a indagação sobre a sua condição de mulher civilizada ao desfilar de quatro pela luxuosa rua Oscar Freire, em São Paulo, de salto alto e vestido longo preto, puxada por uma coleira de pérolas, em uma representação do corpo domesticado pelo consumismo de sedução patriarcal.
Cada nova atuação ia elevando a combinação de intuição e instinto em sua busca de sentido para os movimentos urbanos do seu corpo. Percebeu que poderia contar com forças ancestrais e, em vínculos xamânicos, colocou-se no lugar da Terra, experimentando a sensação das plantas saindo de dentro de sua pele e do ritmo de passos sobre o seu solo. Tudo isso virou dança em nome das vidas que acontecem sob os nossos pés.
As cenas descritas pela autora nos instigam a repensar a maneira como se dá a vida nas cidades, com seus descartes compulsivos e seu isolamento do ambiente natural. Ela descobre que resistir é muito pouco, e que não basta saber o que não se aceita mais. Nesse despertar, mata a "bonitinha" e dá à luz a bruxa urbana, após carregar literalmente um bloco de concreto pelas calçadas até perder o ego e sentir que tem um corpo em exaustão, como o que a cidade tinha quando era campo dunar, lagoas, rios e vegetação costeira.
O movimento de encontro do "corpo floresta" com sua integralidade passa por uma intervenção urbana que propõe afetividade às deidades femininas como equilíbrio energético espiritual. Diante da encosta de um viaduto em que palavras maiúsculas traziam o apelo "Ame a Deus", a bruxa urbana encenou um acréscimo de letras que deixou a mensagem no plural e no feminino: "Ame as Deusas", em um gesto que sinaliza para a diversidade vital das crenças.
A arte e o livro de Natália contribuem para a supressão dos medos engessados por padrões de ser e de atuar na vida urbana. Seus ritos acontecem a partir de uma aura ecológica irradiadora de feitiços, como a beleza e a força que se juntam em forma de matos que germinam pelas fissuras do concreto. Esses brotos que vêm do reino vegetal encoberto, e que ela chama de "células florestais", são antenas da natureza pedindo que a racionalidade urbana deixe o verde respirar.
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