
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Toda vez que me aproximava de um calango com a intenção de pegá-lo, ele corria rapidamente para os matos. A minha ideia de garoto da Caatinga era fazer um criatório com alguns desses répteis tão bonitos quanto dançarinos. Gostava de vê-los ciscando o chão para comer os insetos e aranhas que saíam assustados debaixo das folhas, dos gravetos e das pedras.
Nos dias de feira eu ajudava o meu avô na bodega que ele tinha na praça do mercado, no centro de Independência. Ali eu me deleitava também com outras manifestações de beleza, que enchiam as ruas de emboladas, repentes, cantorias e literatura de cordel. Tudo aquilo me remetia aos movimentos dramáticos dos corpos dos calangos em suas fugas e caçadas.
Em uma dessas ocasiões, ao retornar para casa, encontrei na calçada uma lata de leite em pó vazia. No primeiro momento, pensei em enchê-la de terra e fazer um carrinho de puxar com barbante, que era um brinquedo muito comum no interior. Mas, quando olhei para a tampa, que também era feita de aço, e não do plástico destes tempos mais recentes, vi bem no centro um relevo que tinha quase as dimensões dos buracos que os calangos cavam para se abrigar.
Se à época eu conhecesse a história de Arquimedes (287 a.C. - 212 a.C.), teria gritado: "Eureka"! Em Siracusa, o matemático grego pronunciou esta palavra em voz alta quando percebeu que a água subia com a entrada do seu corpo na banheira, descobrindo, assim, como medir o volume da coroa do rei sem precisar derretê-la. Nos Inhamuns, a minha alegria de menino, ao achar aquela lata, estava associada à resolução do problema da captura de calangos.
Com um martelo e uma chave de fenda da caixa de ferramentas do meu pai, consegui abrir o círculo central da tampa e depois lixei para que a passagem ficasse lisa. Fui até uma vereda em que havia um buraco feito por calango-verde e esperei que ele saísse para pegar sol. Enterrei a lata de uma forma que o furo que eu fizera na tampa coincidisse com o buraco do calango, e cobri tudo de terra. Quando percebi que ele estava de volta, ameacei pegá-lo, e ele, apressado, entrou na lata.
Cheguei a capturar uns oito desses animais para a minha fazenda de calangos-verdes incrustrada no barro fértil das aluviões nas curvas do rio Cupim. O criatório era uma espécie de cratera com menos de um metro de diâmetro por 25cm de altura cavada por mim. No piso coloquei folhas e flores. Revesti as paredes com latas de querosene Jacaré, cortadas com a tesoura que peguei na gaveta da máquina de costura da minha mãe. Assim, as unhas afiadas dos calangos deslizavam quando eles tentavam subir pelas paredes.
Fiquei desapontado quando notei que eles perceberam que estavam em um lugar não natural, sendo observados por um tipo estranho de predador. Peguei um com a mão no intuito de demonstrar que não era bem assim. Ele olhava para mim, sem a linguagem colorida do corpo e sem o gesto costumeiro de balançar a cabeça, como se quisesse me dizer que a camuflagem não fazia sentido naquela situação e que a cabeça parada refletia uma apreensão de sobrevivência.
Dei-me conta de que, do alto de um pé de canafístula, um gavião vigiava o nosso encontro. Por ali passavam cobras e outros lagartos maiores que também poderiam devorá-los facilmente ali dentro. Coloquei o calango que estava em minha mão juntamente com os demais e tirei uma das lâminas de flandres que dava o acabamento da pequena cratera daquela criação de calangos-verdes. Eles demoraram a sair, mas, ao ganharem os matos, dançaram como se ouvissem os artistas da praça.
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