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O resgate do sentido de Terra da Luz
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

O resgate do sentido de Terra da Luz

Tipo Crônica

O racismo é perpetuado por estruturas sociais marcadas por preconceitos, mas também por estados mentais que, para serem alterados, necessitam de reforços simbólicos potentes e de metáforas de fácil assimilação. Uma chave que precisa ser virada para ampliar o processo de cura dessa doença social crônica no Ceará é o resgate do sentido original da expressão Terra da Luz.

Enquanto essa qualificação criada pelo líder abolicionista fluminense José do Patrocínio (1854 - 1905) for mantida como uma ideia de que Terra da Luz diz respeito à claridade comum ao território cearense, e não ao fato de o Ceará ter sido a primeira província brasileira a formalizar a abolição da escravatura, em 25 de março de 1884, seguiremos omissos aos ditames de um passado fechado que nega a participação ativa de lideranças negras no processo de abolição.

Os interesses das classes dominantes da época chegaram a associar Terra da Luz à libertação, porém em um contexto que colocava a pessoa preta liberta na condição de ajudada, e não de conquistadora. Perdurou, assim, o entendimento público de benevolência, e não de conflito. Em mais de um século, a hierarquia econômica e de poder transferiu essa interpretação para o lugar onde há sol o ano inteiro.

Reivindicar o sentido dado por José do Patrocínio a essa expressão, ajustando-o ao seu propósito de exaltar o feito abolicionista pioneiro, me parece oportuno diante dos avanços das movimentações antirracistas e pela igualdade racial. Em que pese o fato de a abolição cearense ter repercutido praticamente em favor da elite libertadora e frustrado expectativas de pretos e pardos nas décadas seguintes, não é recomendável que se desmereça o marco histórico.

O sentimento de injustiça com relação às apropriações indevidas da expressão Ceará Terra da Luz não tira dos afrocearenses a legitimidade de serem os beneficiários do alcance da simbologia contida nessa metáfora. Recuperar a posse desse bem intangível implica desenvolver novas relações entre percepção e reflexão, reconhecimento e respeito, em um reencontro com a história e com o senso de alteridade.

Não há como se pensar em alteridade se não nos dermos conta de quem somos. O preconceito de pele ainda está muito vivo nos múltiplos planos da discriminação. Resgatar o sentido de Terra da Luz é uma ação que coloca na pauta da igualdade racial elementos psicossociais de acontecimentos não lembrados, mas que podem servir como estímulo à consciência das conquistas e sua evolução removedora de arestas das desigualdades

Muitos países africanos têm recuperado tesouros e bens culturais que foram saqueados por nações imperialistas durante a colonização sistemática do continente (séculos XIX e XX). Relíquias em ouro, artefatos de bronze, estátuas de madeira, esculturas de pedra, peças de marfim, cerâmica e zinco, indumentárias e adornos têm sido repatriados, reassumindo seu valor afetivo, artístico, religioso e histórico próprios de cada comunidade espoliada.

Os esforços para reaver o sentido de Terra da Luz têm o caráter de luta permanente contra os efeitos da colonialidade pela consciência do valor simbólico definidora do Ceará Negro, em que pretos e pardos unem suas experiências no campo das desigualdades para o fortalecimento dos movimentos antirracistas e pela igualdade racial. Nessa batalha semiótica, assumir o controle do sentido dessa expressão reforça o sentimento de que ser livre começa com a condição de pensar com a própria cabeça e de aspirar o que pede o coração.

Foto do Flávio Paiva

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