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Não, África não é um país!
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Não, África não é um país!

Incomodado com o fato de, por onde anda, ouvir pessoas referindo-se ao continente africano como se este fosse um país, o escritor Dipo Faloyin, que cresceu na Nigéria, mesmo tendo nascido estadunidense e residindo na capital inglesa, resolveu escrever um ensaio catártico intitulado "África não é um país" - Africa is not a country (Vintage, 2023). Adverte logo de saída que, apenas por ser negro, não tem sotaque africano.

O continente tem suas conexões culturais, políticas e históricas, mas está longe de ser homogêneo. Pelo contrário, a África tem uma grande diversidade geográfica, climática, étnica, religiosa e linguística. Talvez o ponto duplo em comum mais concreto daquele mundo com seus pormenores regionais seja a geopolítica do colonialismo sistematizado e os desafios de reorganização simbólica e material dos jovens países independentes.

Faloyin combina sátira e seriedade para confrontar estereótipos e possibilitar novos ângulos que levem a outras impressões sobre África, tanto para quem é, vive ou descende de algum lugar do continente como para quem é afro-fraternal. O sarcasmo desnorteador chama para uma conversa íntima, ao tempo que a pesquisa aprofundada avisa que, sem ser acadêmica nem panfletária, a obra quer mesmo é propor relações realísticas com o continente.

Ele procura não esconder nada de negativo do que acontece nos mais distintos recantos africanos, mas acha fundamental que se compreendam os motivos que levam governos a falhar com seus povos e o modo como muitos desses povos perpetuam, geração após geração, fabulações tóxicas que fizeram da mentira a interpretação dos fatos, facilitando degradações, descrença e subjugação.

A chave do pensamento do autor é que, enquanto a África for tratada como uma ideia genérica de debilidade, e não como um lugar cheio de peculiaridades e possibilidades, haverá sempre o descaramento de que explorá-la é mérito da missão civilizatória branca formulada na Conferência de Berlim (1884), que regulou a competição imperialista europeia e estadunidense na ocupação do continente.

O autor comete um erro sobre essa partilha da África pelas potências europeias ao admitir que os Estados Unidos não ratificaram esse tratado por respeito ao direito internacional, que recomenda o "consentimento voluntário dos nativos do país cuja posse fosse tomada". Sabe-se que o quinhão dos EUA nesse evento foi o acesso aos mercados africanos e a preservação da Libéria, território que compraram de grupos étnicos do Oeste para assentar escravizados libertos, tornado país independente em 1847.

De todos os desabafos e contextos abordados por Dipo Faloyin para mostrar que 'África não é um país', o que parece mais contundente é a estratégia neocolonial e neoliberal de retratar os africanos como incapazes de resolverem os seus próprios problemas e de aproveitarem suas potencialidades. Daí o esforço do autor para, entre carências e safáris, fazer dessa obra uma plataforma de revelação da riqueza existente na evolução das democracias, das mobilizações sociais e culturais e dos novos arranjos econômicos e sociais de países que precisam ser apreciados sem os filtros da discriminação programada.

Analisa a indústria humanitária que age separadamente de ações emancipatórias, sempre anunciando que África está em apuros sem deixar espaço para perguntas sobre o que há por trás dos problemas geradores de tanta benevolência. Faloyin é incisivo ao afirmar que isso só contribui para que o continente siga vulnerável à espoliação. Imprescindível.

 

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