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Gil na espiral do tempo
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Gil na espiral do tempo

Flávio Paiva: "Ao todo são 15 músicos no palco tecendo vínculos nesse espetáculo autobiográfico que, simultaneamente, repassa aspectos significativos da história recente do Brasil"
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FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 17-11-2025: Ultima Turne Tempo Rei de Gilberto Gil no CFO. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo) (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal FORTALEZA, CEARÁ, BRASIL, 17-11-2025: Ultima Turne Tempo Rei de Gilberto Gil no CFO. (Foto: Samuel Setubal/ O Povo)

Gilberto Gil, 83, escolheu uma espiral como ícone da turnê "Tempo Rei", com a qual se despede do cumprimento de agenda de shows. No alto, suspensa no centro do palco, essa escultura de metal revestida de placas flexíveis de LED comanda o conjunto simbólico da atemporalidade da apresentação de duas horas, tendo ele inteiro de corpo, alma e som.

Com direção artística do roteirista Rafael Dragaud, ex-marido de Preta Gil (1974 - 2025), e cenografia da diretora teatral Daniela Thomas, a travessia do artista baiano, com suas interconexões naturais, culturais e espirituais, se dá em um diálogo íntimo entre o repertório e as projeções, refletindo as pulsões de uma obra sedimentada por um elevado valor poético e artístico.

Nesse cenário fascinante, uma banda de base familiar. A direção musical tem os cuidados dos filhos Bem Gil, que toca guitarra e baixo, e José Gil, baterista. Na guitarra e no baixo, chega também o neto João Gil, e a nora Mariá Pinkusfeld está presente nos vocais. Ao todo são 15 músicos no palco tecendo vínculos nesse espetáculo autobiográfico que, simultaneamente, repassa aspectos significativos da história recente do Brasil.

Foi no sábado, 15, no Centro de Formação Olímpica (CFO), em Fortaleza, que vi essa celebração do grande encontro que o artista fez de conteúdo e forma da sua provocante e sedutora trajetória musical. Ao longo do seu caminho, Gilberto Gil conseguiu dar o mesmo tratamento à desventura e ao sucesso, com uma consistência estética e imaginativa que segue transpassando as trivialidades da compulsão pelas telas e por música de IA, essas criações humanas que não sabem por que os humanos são capazes de criá-las.

Com o título "Gil de todos os santos", há 25 anos escrevi neste Vida&Arte (20/6/2000) que Gilberto Gil clareou o drama do choque existencial provocado pela chegada da cultura digital em redes ao compor "Cérebro Eletrônico" (1969), em cujos versos reconhece que a inteligência das máquinas "faz tudo / faz quase tudo", mas afirma categórico que "Só eu posso pensar se Deus existe / Só eu posso chorar quando estou triste", e complementa: "Eu posso decidir se vivo ou morro".

Em sua fala durante o espetáculo, o artista baiano narra um episódio marcante de aderência às causas da negritude ocorrido em um Festival Mundial de Arte e Cultura Negra e Africana na Nigéria (1977), o qual reuniu ativistas de países africanos e da diáspora. Conta que uma mulher branca se apresentou em uma roda de conversas dizendo que seu país não havia enviado delegação para o encontro, mas que ela dera um jeito de estar lá representando o povo negro argentino, em uma firme demonstração de crença de que o antirracismo é uma questão da sociedade como um todo.

A escolha de "Tempo Rei" como parâmetro existencial das transformações da teia de eventos que regem o mundo é perfeita para esse show em que se escuta tudo, menos o tempo passar. Isso porque o tempo decorrido em Gil não se manifesta em camadas, mas como um novelo de mistérios que bordam a arte e a vida com ritmo, velocidade e criação emanados das convergências movedoras do seu ser.

No palco, o artista elimina a distinção entre futuro e passado, sem cair nas armadilhas do presenteísmo. Canta em "Aqui e Agora" incitando a ambiguidade do enigma do tempo e do espaço: "O melhor lugar do mundo é aqui / E agora // Aqui onde indefinido / Agora que é quase quando". Enquanto isso, tendo a espiral como marcadora de eventos, põe o show em rotação e translação para que passe, como passam os acontecimentos que se tornam história.

 

Foto do Flávio Paiva

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