Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros
Tempos atrás, no Brasil praieiro e rural, "Deus lhe dê uma boa fortuna" era uma expressão de uso comum em resposta ao ato de dar a benção. Com isso se desejava bem-viver, abundância e vida plena. Esse dizer foi entoado pelas cantoras Lia de Itamaracá (81 anos) e Daúde (64) no cântico "Santo Antônio da Boa Fortuna" (Emicida), faixa integrante do álbum "Pelos Olhos do Mar" (Sesc, 2025), com o qual elas desejam boa sorte a quem segue escutando sons que interligam sentidos em tempos de predomínio de linguagem visual.
A herança matriarcal das mulheres afrobrasileiras é exaltada logo na abertura com "As Negras" (Chico César), ecoando presenças, como quem relê um poema flutuante de amor em trânsito pelo real e pela ilusão. O disco tem cheiro de maresia, gosto de sal e de tempero de ares costeiros, espalhando sensações, sentimentos e sentidos que evocam alegrias e dores com intensidades ressonantes aos ouvidos que alcançam o horizonte do ser social, cultural e espiritual.
Ambas têm maneiras bem peculiares de cantar em múltiplas direções, o que vem de dentro e volta para o interior do peito, com respiração de vento e ondas do mar pelo fluxo descolado de temporalidade e em audível beleza original. Não querem ser musas, são deusas do popular e do pop, como uma só vertente de saberes da vida cotidiana e do sentido de destino que vem de antes. A sintaxe da interpretação de Lia e Daúde não é um sobre, é um com, entre si e na extensão liberada pela energia da fusão nuclear de vozes femininas pretas do país.
A direção artística de Marcus Preto e a direção musical de Pupillo Oliveira deram uma incrível unidade ao disco, com o cuidado de realçar o estilo de cada uma. A pernambucana Lia de Itamaracá está cheia de canto e dança de arte cirandeira ao sabor de coletividade, e a baiana Daúde é toda fusão de eletrônico, funk, hip hop e outras sonoridades que um dia já soltou no mundo urbano a "Vida Sertaneja" de Patativa do Assaré. Este é o tipo de dupla que vivifica a música como expressão humana.
Das antigas cantigas de estrada, rua, praça, quintal, terreiro e areal até a atual música de streaming, não existe apenas evolução técnica e tecnológica, uma vez que, antes de tudo, o conteúdo de qualquer peça musical é fundamentalmente humano. O aumento da capacidade de estruturar música, até com etiqueta de IA, tem levado muita gente a perder a crença na composição autoral e coletiva, como se a consistência dos sentimentos e das emoções tivesse caído na vala comum dos algoritmos.
Lia e Daúde revelam o quanto é necessário ter alma para que os sons da existência passem pelas fissuras mais herméticas do consumismo, do imediatismo e das automações. A desilusão com as circunstâncias de um planeta em colapso tem na arte pontos de inflexão para a humanização da realidade. Quando isso acontece, como em "Pelos Olhos do Mar", as praias buscam rodas de coco e encontram corações à procura de quem amar.
Na capa do álbum, a arte de Manuela Navas mostra corpos negros femininos em movimento de despertar; conceito poroso por onde transpiram composições sem idade de Agnaldo Timóteo, Cátia de França, Célia do Coco, Céu, Chico César, Domínio Público, Emicida, Karina Buhr, Lourival Leme, Maurílio Lopes, Otto, Pupillo, Russo Passapusso, Selma do Coco, Silvinho, Tânia Alves e, claro, do Mestre Baracho, autor do clássico "Quem me deu foi Lia", que está na roda com "Se Meu Amor Não Chegar nesse São João". Feliz o dia em que o produtor cultural Beto Hess pensou nesse encontro de boa fortuna!!!
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