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Bacurau e o jogo da infelicidade triunfante
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Bacurau e o jogo da infelicidade triunfante

Tipo Opinião

A imagem de um carro-pipa circulando por estradas esburacadas na paisagem de luz do sertão nordestino até esbarrar em um caminhão tombado e sua carga de urnas funerárias é desconcertante. Com ela, os diretores pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles iniciam o perturbador enredo do filme Bacurau (2019), em exibição nos cinemas.

Bacurau é uma dessas obras que dão um soco no estômago da gente por revelar a que ponto pode chegar a vitória da irrealidade. Tem a contundência social dramática de Cafarnaum (2019), da diretora libanesa Nadine Labaki, e o requinte de amoralidade inconsequente do Show de Truman (1998), do diretor australiano Peter Weir.

Cena por cena, o Bacurau vai oferecendo enunciados consistentes e incômodos de uma sociedade que troca o amor ao próximo pela emoção de eliminar o diferente, o que vive isolado, sem crédito e sem dívida, e que por isso mesmo pode ser abatido como mero semovente em um território propício ao safari humano.

O turismo de caça aos semelhantes descartáveis expende uma violência sobre os corpos que deixaria excitado o filósofo francês Michel Foucault (1926 - 1984). O xis da matança está no confronto entre os que estão cometendo assassinato por diversão e os que não sabem que estão expostos a um game concreto, movido pela angústia de quem comprou a felicidade no mercado e não recebeu.

Um dos gringos conta que pensara em matar pessoas em shopping, mas desistiu. Para ele talvez fosse difícil eliminar um igual, alguém capaz de fazer compras. Os vitoriosos da hipermodernidade acham que têm tudo, mas quando percebem que não têm nada precisam de uma arma para estourar os miolos da própria insignificância. A jogabilidade em Bacurau se dá no mundo da violência estrutural, onde tomar poder é mais fácil do que tomar consciência.

A escolha do nome Bacurau para o povoado que, por sua vez, dá nome ao filme é muito adequada, haja vista o caráter mimético e os hábitos crepusculares dessa ave tão comum nas veredas do Brasil de dentro. Nesse drama social sem consequências, a corujinha deitada voa por vários campos existenciais e pousa na fronteira que separa a luta de classes da luta por parametrização consumista.

O que os turistas-jogadores, com armas sofisticadas, drone e a cumplicidade do prefeito Tony Júnior - que distribui caixão de defunto enquanto pede votos para a reeleição - não esperam encontrar naquela coletividade anônima, apagada dos mapas, é uma potência formada pela trama de índios, quilombolas, prostitutas, cantadores e outros moradores considerados inúteis.

O lugarejo tinha um museu e nele parte do que precisava para enfrentar os ataques dos que estavam ali, infelizes e triunfantes, em busca de sentir alguma coisa. Tinham também uma pílula de vitalidade - algo como a poção mágica de Asterix (Uderzo e Goscinny) -, símbolo dos saberes populares, e uma gestualidade nonsense de desaparecimento como silencioso sinal de recusa.

Em doses de Sagarana (Guimarães Rosa), a trilha sonora de Bacurau dispensa penitências e dá o recado do Réquiem para Matraga: "Se alguém tem que morrer / Que seja para melhorar" (Geraldo Vandré); recado bem dado por um elenco que tem Sônia Braga e Silvero Pereira, as participações de Lia de Itamaracá e Rodger Rogério, e autênticos coadjuvantes da região potiguar do Seridó. Muito bom e necessário!

Foto do Flávio Paiva

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