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A menina mais incrível de todas (1 de 2)
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

A menina mais incrível de todas (1 de 2)

Tipo Crônica

A personagem mais extraordinária da literatura infantil brasileira está completando 100 anos neste 2020. Emília, a boneca que, assumindo perfeições e imperfeições do comportamento humano, conquistou o direito de ser criança de verdade, atreveu-se a abrir um caminho para a infância em nova configuração familiar e com modos transgressores de afirmação da criança com relação ao adulto; caminho esse que vem sendo percorrido por crianças e adultos capazes de sentir e de entender a infância como fundamental na dinâmica integrada e integral da sociedade.

A genialidade do escritor paulista Monteiro Lobato (1882 - 1948) criou Emília como uma referência pioneira na conquista de espaços onde meninas e meninos pudessem ver, ouvir, sentir, pensar e se expressar como crianças, dando assim um denso e sofisticado contributo cultural e educacional para o entendimento da infância, das relações infantis e do significado de ser criança no mundo. A personalidade irreverente e ousada de Emília anunciava há um século que a criança não seria mais apenas um ser menor, sem voz e exposta a regimes de palmadas e submissão.

Pioneira na emancipação infantil e, por conseguinte, da mulher, Emília, com sua cidadania infantil, desafiou regras e autoridades inibidoras da afeição e da liberdade, inserindo a criança no estatuto dos semelhantes, independentemente de idade. Ela surge no livro A Menina do Narizinho Arrebitado (1920) como filha da solteira Tia Nastácia. Nasce boneca do pano de uma saia velha, mas é criada por um núcleo familiar expandido, formado por gentes e bichos, em naturalismo social e humanismo educativo do que viria a ser o Sítio do Picapau Amarelo. Constrói igualdade na diferença e vira pessoa. Na personagem Emília, a individualização da criança está essencialmente vinculada à vida coletiva.

Palpiteira, mandona, exigente e autoconfiante, em seu avanço pelo campo da integração social ela leva o exercício da infância ao limite, alterando os cursos das narrativas, movida pelo valor da contestação, da mente livre e da similitude. Na literatura infantil mundial Emília tem um equivalente menino, que é o Pinóquio (1881), do escritor italiano Carlo Collodi (1826 - 1890), que nasce boneco de madeira e, de tanto ser verdadeiro em suas fantasias e contradições na descoberta do mundo, conquista o direito de ser criança. Para eles compus a música Pinóquio e Emília, gravada por Olga Ribeiro (1999) e pela Banda Dona Zefinha (2012).

Emília pôs na pauta da educação brasileira a necessidade de escuta da criança, rompendo com a lógica da incapacidade infantil de se pronunciar numa sociedade adultocêntrica. Mostrou que meninas e meninos não são bichinhos a serem domesticados, mas seres abertos a uma educação inspirada na consideração do outro como princípio de dignidade. No construtivismo lobatiano, quando a boneca reage à condição de demente e deixa de ser um brinquedo mudo, ela avisa que tem um "eu" e matricula a necessidade de a criança ser pensada e tratada em conformidade com o respeito mútuo das regras de convivência.

Intuitiva, irreverente e falando sem rodeios, Emília tornou-se tão envolvente que assumiu até função didática na educação brasileira. E fez bonito. (Continua na terça, dia 18/2/2020).

Foto do Flávio Paiva

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