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Isolados, mas não separados
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Flávio Paiva é jornalista e escritor, autor de livros nas áreas de cultura, cidadania, mobilização social, memória a infância. Escreveu os livros

Isolados, mas não separados

Tipo Crônica

Durante os bombardeios, nas guerras convencionais, as pessoas inocentes escutam dentro de casa os estrondos das bombas, sem saber onde a próxima cairá. Angustiadas, elas gritam, oram, enlouquecem e não podem fazer nada. Passados os ataques, restam milhares de mortos, cemitérios a céu aberto, ruínas, ruas desérticas, focos de incêndio, desolação.

As investidas da Covid-19 contra a humanidade têm ares de bombardeamento, mas com características inversas. Não existem artefatos lançados, estrondos, escolha entre alvos civis ou militares, gritos de horror, nem prédios em escombros. O que pode ser comparado a uma guerra é a destruição massiva de corpos e os estragos psicológicos nas mentes afetadas pela tragédia.

Os ataques do coronavírus são silenciosos, invisíveis e, simultaneamente, causa, acontecimento e consequência. As vítimas dessa infecção saem direto do leito de morte para o sepultamento, em uma acentuada alteração nos rituais fúnebres. Devido ao risco de contaminação, não dá para fazer velório, cortejo, celebração de despedida. Somente os coveiros, de máscaras e álcool em gel nas mãos, guardam a imagem do túmulo.

A ausência do choro coletivo, comum nos encontros de adeus aos mortos, leva muitas pessoas de todas as camadas sociais a, mesmo aturdidas com o que está se passando, não se darem conta do tamanho do problema. Exceto quando alguém próximo entra em óbito. Essa dificuldade de compreensão acaba sendo aproveitada pela má-fé de alguns que apostam na negação dos fatos como tática de preservação de atuais e decadentes modos de vida.

Por colocar em xeque as racionalidades técnicas, científicas, econômicas e políticas, a pandemia do coronavírus é facilmente utilizada para confundir o jeito particular com que as pessoas se percebem diante da situação. Os atos voltados para dificultar o discernimento e impedir a tomada de consciência do que se passa têm conotação criminosa, haja vista que conduzem o senso comum à opção esquizoide pelo suicídio em massa.

A Covid-19 força a experiência de uma ruptura relacional pelo distanciamento físico dos semelhantes, porém isso não significa ocultar-se da própria espécie. Isolados, mas não separados, podemos enfrentar essa guerra sem forçar os limites dos hospitais e dos serviços funerários. Diferentemente dos discursos contra a quarentena e a favor do relaxamento dos cuidados recomendados para evitar a transmissão do vírus, a sociedade necessita de prudência para não chegar ao desespero.

A bem da verdade, o grande inimigo dessa provação que abala o mundo não é o vírus, somos nós, os humanos. Estamos diante de um fenômeno de visão equivocada de mundo. A concentração desmedida de riqueza, a explosão demográfica, o consumismo e o descaso para com o ecossistema tornaram o ser humano um vírus para a Terra. É bom lembrar que todos os seres vivos são compostos uns dos outros e que o mundo é feito de migrantes.

As aglomerações facilitam o deslocamento da Covid-19. É natural que os vírus não queiram desaparecer. Assim como as migrações humanas buscam os lugares prósperos para viver, os vírus migram procurando espécies vencedoras na seleção natural. É provável que estejam enganados nesse julgamento de valor. De toda sorte, o novo coronavírus está abrindo para nós uma página complexa do livro da existência. Seremos capazes de entender a mensagem?

 

Foto do Flávio Paiva

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