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40 anos da eleição de Maria Luiza: o fenômeno e euforia de uma Fortaleza rebelde
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Guilherme Gonsalves escreve sobre política cearense com foco nas atuações Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece) e Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor), mostrando os seus bastidores desdobramentos no jogo político e da vida do cidadão. Repórter de Política do O POVO, setorista do Poder Legislativo, comentarista e analista. Participou do programa Novos Talentos passando pelas editorias de Audiência e Distribuição e Economia, além de Política. Também escreve sobre cinema para o Vida&Arte

40 anos da eleição de Maria Luiza: o fenômeno e euforia de uma Fortaleza rebelde

Em 15 de novembro de 1985, Maria Luiza Fontenele venceu eleição em uma das maiores reviravoltas da história da política brasileira
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A vibração de Maria Luiza com a vitória contagiou correligionários e um carnaval tomou conta da cidade (Foto: Arquivo O POVO Doc)
Foto: Arquivo O POVO Doc A vibração de Maria Luiza com a vitória contagiou correligionários e um carnaval tomou conta da cidade

A última pesquisa Ibope para Prefeitura de Fortaleza na primeira eleição direta municipal desde 1962 indicava Paes de Andrade, apoiado pelo governador Gonzaga Mota, do PMDB, com 39,5% das intenções de votos; Lúcio Alcântara, do grupo dos coronéis cearenses, tendo 23,1% e a petista Maria Luiza Fontenele com 20,3%.

A eleição realizada há 40 anos, no dia 15 de novembro de 1985, teve resultado surpreendente. A deputada estadual teve 159.846 votos, o equivalente a 34,36%. Maria se tornou a primeira prefeita eleita em capital, junto de Gardênia Gonçalves em São Luís no mesmo ano, e a única do PT a alcançar o feito até então, entre mulheres e homens.

Em entrevista à coluna sobre os 40 anos do feito, Maria lembrou do carnaval em que se tornou Fortaleza, lembrando de forma emocionada ao ver cadeirantes, idosos e mulheres distribuindo panfletos com o rosto dela ao som de "Maria, Maria", canção de Milton Nascimento, trilha sonora da campanha e histórica vitória.

"Era um movimento muito grande na cidade e um movimento muito forte, os ônibus andavam circulando num movimento medonho, mandando o povo subir pra votar em mim, onde a gente chegava era uma alegria total. Quer dizer, as ruas em que eu passavam encontrava mulheres e idosas, cadeirantes nas calçadas distribuindo panfletos para votar na Maria e a música "Maria, Maria" tocando", afirmou.

Para ela, candidata de bandeiras operárias e socialista com união de mulheres e combate a pobreza e miséria, as imagens da rebelde capital cearense, lembravam a revolução soviética. "As bandeiras e as cores, onde a gente passava tinha bandeira do PT. Se não era bandeira era uma toalha vermelha, um lençol, foi uma coisa extraordinária", disse.

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Passada a euforia da vitória com contextos nunca vistos antes e nem depois, Fortaleza só voltaria a eleger uma mulher como prefeita 19 anos depois, com Luizianne Lins (PT), em 2004. Maria relata dificuldades desde a transição de governo, resistências a ela e divergências dentro do próprio grupo que a elegeu.

Apesar da vitória no Executivo da capital cearense, a Câmara de Vereadores já estava formada. Era a mesma que vinha eleita desde 1982, pois não houve eleição legislativa naquele ano de transição.

O dia da posse não foi um dia feliz, mas de preocupação. Anos depois, Maria foi eleita deputada federal, pelo PSB. Hoje faz parte do grupo Crítica Radical, que prega o rompimento total com o sistema vigente, incluindo a política.

Com uma administração conturbada, mas uma campanha histórica, Maria representou um dos maiores fenômenos políticos testemunhados na política alencarina, sendo o som, a cor e o suor de uma Fortaleza que há mais de 20 anos não votava para prefeito(a).

Natural de Quixadá e com força, raça, gana e sonho sempre, Maria Luiza conseguiu unir diversos grupos da sociedade como mulheres, comunidades, movimentos estudantis e igrejas, um povo que ria quando se devia chorar, mas ensinado por meio de representantes políticos a ter uma estranha mania de ter fé na vida.

"O povo desta cidade adquire legitimamente o direito de cultivar a esperança na sua expectativa de construir uma administração que responda aos seus direitos imediatos e anseios maiores. Uma esperança que encontrou sempre as maiores dificuldades para se fortalecer, e que apesar de tudo, manteve-se inteira. Nossa vitória nas eleições de 15 de novembro possui este significado maior. Ela foi sem dúvida a expressão de um fenômeno político de grande importância. O apoio de um programa claramente comprometido com a busca de uma alternativa operária e popular, rompeu com a lógica estéril de uma ação política estruturada na manutenção dos privilégios e abriu perspectivas imensas cujas repercussões extrapolam os limites do nosso município e do nosso estado", declarou Maria no discurso de posse na Prefeitura de Fortaleza, em áudio cedido pela equipe de José Guimarães como parte do acervo do deputado.

O POVO - Como foi sua saída do PMDB para ser candidata pelo PT em 1985?

Maria Luiza - A decisão de ser candidata a deputada estadual (em 1978) foi uma decisão do movimento pela anistia que queria divulgar o movimento. Eu não tinha o interesse em participar do poder. Então, para a Prefeitura foi uma situação semelhante. Eu tinha uma atuação muito forte em Fortaleza, inclusive em torno de ocupações de terra, não por mim, mas por um grupo que necessitava. E aí resolveram que eu deveria me candidatar a prefeita.

O Paes era o candidato do PMDB, então o meu agrupamento, que era naquele momento o Comitê Democrático Operário e Popular (CDop), entrou em contato com o PT e foi aceito. A gente vinha participando do movimento Diretas Já, o meu mandato teve uma força grande pelas Diretas Já.

OP - Quem eram os seus principais aliados?

Maria - União das Mulheres Cearenses, União das Comunidades da Grande Fortaleza e vários outros movimentos, como o movimento que era contra a fome e a miséria. Então, aí também teve um papel muito forte da igreja.

Rosa (da Fonsêca) e eu integrávamos a União das Mulheres Cearenses, junto da Célia Zanetti, mas eles coordenavam o comitê democrático. O grande estrategista da campanha foi o Jorge Paiva. Estabeleceu estratégias importantes em movimentos pela anistia e depois na minha candidatura a deputada. Quando candidata a prefeita, eu fiz um grande pronunciamento porque nós ganhamos as eleições por iniciativa dele e também a indicação de uma nova data para o comício da virada.

Nós íamos fazer um comício no fim de outubro, a eleição na época era 15 de novembro, e nós passamos o comício para 12 de novembro e eu falaria (na madrugada) de 12 para o 13. Falar na madrugada: "Faz escuro, mas eu canto porque a manhã vai chegar" (verso de Madrugada Camponesa, de Thiago de Mello). E também o contato dele (Paiva) com o autor Milton Nascimento da música "Maria, Maria".

OP - Qual era a mensagem que a sua candidatura queria passar?

Maria - A questão fundamental era se, como deputada, eu consegui realizar tantas coisas de importância para Fortaleza, (imagina) como seria como prefeita. E aí na União das Mulheres nós organizamos o movimento que na época era chamado de Movimento Gay na cidade. Tínhamos uma forte intervenção na questão cultural, não só em termo de movimento estudantil e da universidade, mas queríamos abarcar o máximo dos setores da sociedade. Tinha apoio de médicos que tinham clínicas porque eu defendia com muita veemência o SUS e todo o setor de saúde.

OP - Como foi o dia a dia da campanha na reta final e o momento de virada?

Maria Luiza - Vimos que um comício só não estava resolvendo. Porque havia solicitação para estarmos em todo canto e qualquer lugar. Passamos a fazer três comícios à noite. Eu assegurava o primeiro, o menino que dirigia o carro garantia a mobilização do segundo e a Rosa no terceiro. Então a gente passava num comício e ia no outro e era comício com muita gente. E nós começamos a achar que podíamos dar uma virada.

As pesquisas não indicavam que eu teria sucesso e aí nós perguntamos às pessoas o que tava acontecendo se era tanta gente nos comícios, se tava tendo algum tipo de questão. Ninguém dizia que iria votar em mim com medo de perder os pequenos benefícios que recebiam do governo. A nossa compreensão de que poderia haver uma mudança foi que o comício da virada, na Praça José de Alencar, onde eram os terminais de ônibus, tinha havido a greve dos motoristas e eu tinha tido um desempenho muito grande, os motoristas todos passaram a me apoiar e daí o comício teve em torno de 50 mil pessoas.

OP - Como foi a preocupação com a apuração até o momento do anúncio do resultado?

Maria - Fizemos uma reunião para boca de urna e tinham mais de duas mil pessoas e fizemos não sei quantos mil panfletos. No dia da eleição, cada canto que eu chegava o povo já tudo com o panfleto na mão.

Eu informei isso no horário do almoço e o Jorge foi quem disse: “Vá lá na rádio O POVO e avise que você ganhou”. Tava a Adísia Sá e uma outra pessoa, nós chegamos lá e colocamos que em todo canto que a gente chegava era uma multidão na boca de urna.

E fomos no fim do dia para o local onde a época era a apuração, quando chegamos lá, estava o meu cunhado e disse: “Maria, você tem como manter gente que fique a noite aqui?” Eu disse: “Pra quê?”. Ele disse que se não tiver gente vão adulterar as urnas porque a vitória é para ser dada ao Paes. Nós comunicamos isso e a militância ficou toda, quem tava lá não foi pra casa.

No dia seguinte, quando começaram o Conjunto Ceará, Pirambu, era uma votação extraordinária. Tudo o que eu dizia era motivo de crença porque eu não tinha fama de ser mentirosa, pelo contrário, era muito sincera e verdadeira.

E o fato também da questão da mulher é uma coisa muito marcante em toda a minha experiência de vida. Inclusive o fato de quando deputada ter entrado de calça comprida na Assembleia, isso correu o mundo. Então o resultado foi positivo. Fui prefeita, só que por três anos. (As eleições para prefeito haviam sido em 1982. Mas na ditadura, não havia eleições para prefeitos de capital. Os governadores indicavam. Com o fim da ditadura, em 1985, foram realizadas eleições nas capitais, para a conclusão dos mandatos que iriam até 1º de janeiro de 1989).

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OP - Como foi o dia 15 de novembro, o da votação?

Maria -  Era um movimento muito grande na cidade e um movimento muito forte. Os ônibus andavam circulando num movimento medonho, mandando o povo subir pra votar em mim. Onde a gente chegava era uma alegria total. Quer dizer, as ruas em que eu passava encontrava mulheres e idosas, cadeirantes nas calçadas distribuindo panfletos para votar na Maria e a música "Maria, Maria" tocando.

Eu sei que quando eu cheguei (para votar) foi uma loucura total e absoluta, o povo todo cantando "Maria, Maria". Era gente lá, maluqueira total, lá no (Ginásio) Paulo Sarasate. Quando eu vi o resultado da apuração eu lembro que eu saí pra almoçar na casa em que a minha mãe (Diva) faleceu e que a minha irmã era que morava nessa época. Eu chegando lá pedi para a minha mãe que não me deixasse nunca trair o povo. Quer dizer, já tava me sentindo prefeita. Foi no segundo dia.

Há um registro muito forte desse momento. Há uma multidão me aplaudindo quando eu apareci, mas eu faço um registro de duas pessoas. A dona Fernanda, que era uma pessoa que tinha muito peso na cidade do Quixadá, dona de fábrica de algodão, e o filho dela estudava no colégio em que eu estudava, era o primeiro da turma e eu queria passar ele. Era uma pessoa muito aconchegante e foi praticamente a primeira pessoa que me cumprimentou lá em frente. E a outra pessoa foi o Lúcio Alcântara, que era candidato.

Quando deputada eu assisti a um filme “10 Dias que Abalaram o Mundo” foi sobre a revolução soviética e eu tava me sentindo como se fosse aquilo. A loucura que aconteceu com a revolução, povo na ruas, as bandeiras e as cores, onde a gente passava tinha bandeira do PT. Se não era bandeira era uma toalha vermelha, um lençol, foi uma coisa extraordinária. Lembro muito do fotógrafo que eu olhava e ele tava atrepado em uma árvore filmando.

OP - Passada a euforia da vitória, como a senhora se sentiu? E como foi a conturbada da transição de governo até a posse?

Maria - Primeiro o pavor com as chuvas torrenciais que caíram nos últimos dias de dezembro. E também a minha preocupação com o volume de coisas que eu prometi, não só resolver o problema do lixo como resolver o problema da Beira Mar. E a quantidade de gente que vinha em apoio, isso foi uma coisa muito interessante, mas a problemática da indicação dos nomes. Porque existe o PT querendo indicar nomes, eu querendo indicar nomes, os meus apoiadores do Comitê Democrático Operário e Popular (CDop) querendo indicar nomes, pessoal da igreja. Pra ter um entendimento sobre tudo isso. Por exemplo, uma das pessoas que eu indiquei foi apoio do Paes de Andrade, que foi o companheiro da Secretaria de Cultura, Cláudio Pereira, porque eu achava o Cláudio Pereira uma liderança extraordinária.

O pessoal do CDop indicou a secretária de Transporte, era uma menina ligada ao que tinha de mais radical, a Marta Maria. A igreja indicou o Padre Haroldo para ser o secretário de Educação. Eu indiquei o (José) Guimarães, que era meu assessor parlamentar, para ser chefe de gabinete. O PT indicou o Paulo Linhares para ser secretário de Imprensa. Tinha uma gama de pessoas, cada um puxando para um canto para indicar os nomes.

OP - E o dia da posse, qual foi a sua sensação?

Maria - Pra mim não foi um dia de muito alegria, mas de muita preocupação. Inclusive, já tinha problema com o meu próprio agrupamento. Porque eles queriam que a gente fizesse a revolução e eu ao indicar nomes como o Cláudio Pereira, como o próprio Guimarães.

O ato, se você me perguntar, eu não tenho uma descrição do que foi realmente, mas eu também tinha problema com o meu vice. Mas tudo bem lá na posse. Eu fiquei muito temerosa com a imprensa me colocando esse sufoco.

Logo no início, o Jorge Paiva queria que eu decretasse estado de calamidade pública e eu não decretei. Se os vereadores tão querendo me cassar por nada, por nada não, pela campanha, imagina se eu decretar estado de calamidade pública, vão dizer que eu não tenho competência. Aí decretei estado de emergência e diminuí o peso da gravidade daquele momento.

OP - Quais foram os principais desafios do primeiro ano à frente da Prefeitura de Fortaleza?

Maria - O primeiro ano foi um ano traumático, porque tinha havido uma das maiores secas do Nordeste, no Ceará. Fortaleza teve um incremento populacional e o fato também de que as pessoas ocuparam espaços de rios e lagoas a chuva torrencial que começou em 1986, aí tu imagina a quantidade de casas que caíram.

E como não me aliei à elite, eu continuei fazendo o trabalho com o povo. Tanto a questão do controle do lixo como as várias iniciativas e uma das iniciativas foi chamar os prefeitos de outras capitais e demos o grito que foi chamado o “Grito das Capitais” e desse grito nós exigimos ser recebidos pelo Sarney, que nos recebeu.

Eu só podia aparecer nas páginas de jornais ou na televisão se fosse coisa relativa a problema repressivo ou o que fosse prejudicar a minha imagem. Como dizer que eu era dona de Motel, o que não era. Era uma Maria Luiza Holanda Quixadá, eu sou quixadaense. Mandavam botar lixo na rua para aparecer como sendo uma falta de cuidado com a cidade e outras coisas mais muito terríveis. Tentaram dizer que eu era “sapatão”, expressão da época. Era uma perseguição não só através da imprensa, que é o quarto poder.

E como tinha toda essa problemática a campanha era “o PT vai governar com o conselho popular”. Então a gente queria governar com o conselho popular. E a Câmara de Vereadores, por conta dessa história do lixo e das casas caindo, pediu o meu impeachment, mas nós tínhamos um cuidado muito grande dos aposentados com problema mental e eles botaram os vereadores para correr do Theatro José de Alencar quando os vereadores foram pedir impeachment. Isso é um fato inusitado. Como é que aposentados com problema mental foram os que enfrentaram os vereadores e não deixaram que o pedido de impeachment fosse efetivado.

Foram as comunidades que ajudaram no processo de construção das casas e foi mais uma vez motivo de apoio popular e de confronto, porque as empresas passaram a nos perseguir. Inclusive botaram paus nos buracos nas ruas com cartazes: “Não tire o meu pau do buraco da prefeita”. Todo tempo era uma perseguição muito grande.

Foto do Guilherme Gonsalves

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