Advogado, pós-graduado em Processo Penal e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor). É professor do Centro Universitário Estácio/Ceará e da Universidade Sete de Setembro (Uni7). Fundador do escritório Hélio Leitão e Pragmácio Advogados
O nosso simpático personagem logo se adaptou à vida monástica e suas regras, afinal a polícia batia à sua porta e o medo de ser preso supria-lhe em muito a falta de convicção. Já predicara Santo Agostinho que a necessidade não tem lei
Em minha última intervenção neste espaço, apresentei-lhes um pouco da saga do cearense Honório, o adversário da ditadura instalada no Brasil em 1964 que, prisão decretada pela justiça militar, finge uma súbita e, para quem o conhece, improvável conversão à fé católica, homiziando-se em um convento cujo nome, prometi, não vou declinar. Foi muito bem acolhido pelos crédulos frades, que enxergaram nele um futuro confrade, dos mais promissores.
Hoje lhes falo um pouco mais da temporada em que Honório ali esteve, em princípios da década de setenta do século passado, submetido aos rigores da vida conventual. Acordava cedo da manhã ou madrugada ainda, para as primeiras orações e missa. Pesada carga de estudos e dieta espartana. Boa parte da manhã era dedicada à leitura do livro da vida do santo que serviu de fonte de inspiração àquela ordem religiosa. Era um livro antigo, imenso, que acredita ainda esteja por lá. Tudo transcorria sob uma disciplina de ferro, supervisionados os trabalhos pelo padre reitor, homem severo.
O nosso simpático personagem logo se adaptou à vida monástica e suas regras, afinal a polícia batia à sua porta e o medo de ser preso supria-lhe em muito a falta de convicção. Já predicara Santo Agostinho, ali pelos anos 400 da era cristã, que a necessidade não tem lei. Honório, àquelas alturas já adotando o onomástico "frei Silva", talvez sem nem mesmo o saber, encontrava álibi na erudição do bispo de Hipona.
Sua adesão não foi, todavia, plena. Nem poderia. De espírito indisciplinado, frei Silva seguiu aprontando das suas. Conseguia dar escapadelas. Omitindo sua dupla condição - de religioso e revolucionário perseguido pelos agentes ditadura, chegou a arrumar algumas namoradas nos arredores do convento. Ninguém é perfeito.
Ainda que sob proteção eclesial, natural que frei Silva vivesse sempre em estado permanente de alerta, afinal fugia da polícia. E qual não foi o seu espanto quando, um certo dia, o rotineiro estudo da vida do santo foi bruscamente interrompido pelo padre reitor, que anunciava a todos que um herege, um subversivo, havia se infiltrado em um convento da ordem, em fuga, pois o exército estava nos seus calcanhares. Agora a farsa tinha vindo abaixo, pensou!
Enquanto ouvia o relato indignado do padre reitor, Honório, agora despido da identidade de frei Silva, pelo menos era o que naquele momento cria, tomado de pânico, planeava o que fazer. Saltar imediatamente pela janela e embrenhar-se no matagal vizinho? Ir antes à cela que ocupava, munir-se do revólver que conseguiu contrabandear para dentro do convento e resistir?
Em meio ao dilema que lhe assaltava o espírito, o padre reitor, famoso por sua usual prolixidade, finalmente chegava ao fim da história, concluindo que tudo aquilo lá se passara ...no Rio de Janeiro. Alívio.
Entre saltos e sobressaltos, Honório ficou por um ano no tal convento. Saiu depois pelo país afora, clandestino. Veio a Lei de Anistia e a ordem de prisão nunca foi cumprida. Restam as lembranças e as dores daqueles tempos estranhos.
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