Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
No começo não levaria tanto tempo. Era tudo provisório, voltávamos para casa e estocávamos alimentos para semanas, certos de que logo encontrariam solução definitiva para o quadro - qual quadro, não sabíamos então, apenas que uma doença se espalhara e o remédio era recolhimento, isolamento, uma escapada para dentro, um retorno ao interior, no contato social o risco maior.
Em duas semanas completamos um ano desde março, mês em que, salvo engano, decidiu-se que o melhor seria trabalhar de casa, e em casa permanecemos.
Agora já não há previsão. Mesmo a vacina se situa num horizonte impalpável. Pode ser que sim, pode ser que não. O mais provável é que não tenhamos vacina ainda neste ano, talvez nem no próximo.
Entre idas e vindas, será outro ano de luta contra a doença para a maior parte de nós, às voltas com um modo de ir levando as coisas entre normalidade e convulsão, à mercê de uma tragédia, como se dançássemos no precipício.
Nem sadios para o dia a dia, nem doentes para o confinamento, adeptos da clausura como profilaxia, esgotados de um processo no qual foram drenadas as energias, cansados inclusive do contágio, para o qual se olha com um bocado de desdém nos últimos dias. Como se o "e daí?", aos poucos, tivesse se imposto, vencido a guerra, instaurando um "deixai fazer, deixai passar".
A máscara, antes incômoda, passou ao natural, item incorporado totalmente ao cotidiano. O anormal assentado. O normal é o enfermo. O mesmo para os protocolos, que se banalizaram. O álcool gel, as pias na entrada, o termômetro apontado não para a testa, mas para o pulso, prova de que estupidez também foi agregada à rotina como craca no casco do navio.
Combinamos o pior da pandemia com o máximo de descuido. Uma desimportância com o que pode suceder. Os números foram de escandalosos a mero registro contábil, uma burocracia qualquer, não importa se mil ou mil e quinhentos. A nova onda não mais que marola.
Hoje, Quarta-feira de Cinzas, seria o fim, o dia derradeiro de brincadeira, aquele reservado aos mais resistentes, que pularam de sexta a terça e chegam esbodegados, exauridos, mas contentes e dispostos.
Não deixo de lembrar que é assim que deveríamos estar, e não fartos do pior, cansados de não haver receita para o enfrentamento desse mal.
Depois, a quarentena cristã, período no qual os apetites escasseiam. Tempo de recolhimento, travessia no deserto e esperança de renascimento, aos que teimosamente calham de ter esperança. Mas já estamos todos recolhidos e encolhidos, penso comigo, as fomes maltratadas, um estirão de terra árida cujo fim custa a se enxergar.
Quase um ano atrás, fui ao supermercado e ri de quem comprava montes de rolos de papel higiênico, a pandemia não se tinha revelado por completo. Ainda podíamos rir nessa época, mas isso logo mudaria.
No calendário, há um mundo antes e depois de fevereiro, uma vida antes e depois do Carnaval. Hoje, as cinzas da quarta-feira não demarcam essa mudança, essa transição.
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