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De repente cringe
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Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

De repente cringe

Jovens acusam velhos de serem velhos e os velhos, por sua vez, os jovens de serem jovens, de modo que a guerra etária que explodiu nas redes sociais se resume a uma troca de amabilidades intergeracional cujo efeito é revelar que os jovens são jovens e os velhos, velhos, no que estão todos cobertos de razão.

Afinal, faz parte do ethos jovem desgostar do hábito do velho e do velho, maldizer o gosto do jovem, um conflito que se arrasta desde que o mundo é mundo e justifica a própria existência tanto de velhos quanto de jovens. Esse é o único Fla x Flu atemporal.

A isso deu-se o nome de "cringe", ou vergonha alheia, um sentimento que talvez se expresse melhor numa palavrinha que, para mim, sumariza tudo isso com mais eficácia, graça e sem necessidade de recorrer a estrangeirismos: "uó".

Um corte de cabelo, uma roupa, uma dança ou modo de vida são "uó" quando... Bom, a gente sabe quando são, é algo que dispensa qualquer explicação, basta olhar. Aquela ombreira que a tia usava, a camisa do pai aberta até o peito nas fotos do aniversário, o mullet do primo mais velho, tudo isso era de fazer corar já naquele início dos anos 1990, uma década por essência cringe, talvez só não mais do que a de 1980, que, por sua vez, supera a de 1970.

Eu, por exemplo, sempre fui um bocado assim, ou seja, um jovem velho ou velho jovem, a depender do lugar e de quem falava, que viera ao mundo para passar vergonha. Era motivo de chacota por não ser suficientemente jovem e adotar os códigos da mocidade, logo um alvo fácil da volúpia cringe; e tampouco velho o bastante para entender do que se tratava a velhice (pagar as contas ou abrir uma lata de cerveja no meio da tarde).

Quando dei por mim, esse tempo de apontar as falhas dos outros havia passado, e eu ficara pelo meio do caminho, um elo perdido entre minha geração e a seguinte, uma presa indefesa para quem chegava e para os que já tinham partido, no que só me restava mangar dos meus irmãos.

Ora, rir da geração que nos precedeu é uma prerrogativa existencial de qualquer pessoa que atravessa a casa dos vinte anos, até que ela mesma se torna motivo de piada dos novíssimos e assim por diante, numa sucessiva cadeia de vexames pessoais que protagonizamos antes de sermos nós mesmos as razões da pilhéria alheia.

De maneira que, querendo ou não, todo mundo é cringe de alguém. E se na sua turma ninguém é, sinal de que o cringe deve ser você.

Sem drama. Uma hora isso iria acontecer. Essa mudança de patamar é tão tênue, tão fugaz, tão imperceptível quanto os fios brancos insidiosos que, a pouco e pouco, vão dominando os pretos, esbranquiçando a basta cabeleira negra como as asas da graúna.

Até que, um dia, eis o cringe. Começa com uma bermuda cargo na fila do galeto no domingo, piora com uma combinação mais confortável de jeans com tênis e camisa social, depois com uma bebida démodé, segue-se com um acessório cujo uso está datado, mas ninguém avisou, e continua com a manutenção de hábitos já aposentados ou, pior, a nostalgia em relação a coisas enterradas pelo desenvolvimento tecnológico, como locadoras de vídeo.

Tudo isso enquanto preservamos expressões ou formas coloquiais da fala ("kkk") ou mantemos certos gostos e rotinas (café da manhã) que, para os mais jovens, equivalem a fósseis de uma civilização há muito desaparecida.

Mas não se preocupem: o cringe, como o crush, é apenas um nome novo para algo que já existia desde muito tempo. Assim como de repente começou, talvez de repente um dia desapareça, num salto mágico dos 13 aos 30.

Foto do Henrique Araújo

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