Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.
Repasso os 59 segundos da cena de puro divertimento talhada numa chave gestual gongórica e vazada numa cartela de cores do "ancien régime". O jantar, seus comensais, o rococó da paisagem, um momento capturado da história, como um osso de dinossauro.
O vídeo exala ar de fim de festa, embora, a julgar pelos pratos vazios e o andamento acelerado dos garçons, presuma-se que a refeição não tenha sido servida ainda. Um baile da Ilha Fiscal remasterizado para novas plataformas e com personagens desbloqueados depois do mezzo golpe do 7 de setembro.
As roupas no mesmo tom de azul, sem gravatas, denotam informalidade, mas uma informalidade passadiça, quase inadequada. Note-se o impróprio da situação: algo ali se desenrola fora do quadro, da tela, como um conto macabro, um fundo falso sob o qual talvez encontremos o cadáver de algum dos milhares de mortos pela Covid.
Do que riem os convivas, entre eles Michel Temer? Esse riso por si é pornográfico, obsceno, num duplo sentido: o da falta de pudor, riso desavergonhado e contrário ao contexto de luto, mas também porque "oposto à cena", conforme sua raiz etimológica: o que "não se pode levar ao palco por atentatório à moral".
Segundo, percebam o mesmo Temer replicado como um doppelgänger ad infinitum. Temer, como o agente Smith de "Matrix", cria a sensação de que se está diante da mesma entidade, e faz sentido que seja assim.
Smith é uma espécie de falha da máquina, um duplo de si, constructo que se autonomiza e rebela contra o sistema, passando a impor o próprio regime. Uma ameaça tanto a humanos quanto às inteligências artificiais, que selam uma aliança provisória para combatê-lo.
O que faz Temer movendo seus dedinhos mágicos e se permitindo deliciosas gargalhadas de autocongratulação?
Temer agencia uma "pax" armada entre um presidente abertamente golpista, uma máquina de cuspir e horrorizar, e um ministro do Supremo, ou pelo menos é assim que deseja que todos interpretem esse arranjo. Como um milagre da articulação, um feito do intelecto desse homem cujos modos melífluos ornavam o noticiário até poucos anos atrás.
O ex-vice é o Smith que senta à mesa com máquinas e humanos, ele mesmo resultado de acordão de conveniência, com o STF, com tudo. Entende de autopreservação. Conhecedor dos dois mundos (amigo do magistrado, conselheiro do presidente), intercambia vantagens de lá e cá, como um Caronte com pretensões literárias e refino de salão de bem-nascidos.
Daí que todos na sala se pareçam com o ex-presidente, porque de fato é o que são, fenotípica e ideologicamente: agentes engenhosamente preservando interesses da Matrix num convescote que faz as vezes de encontro de turma de meia-quatro.
Há mais elementos nesses 59 segundos, é claro. A harmonização entre a cor das paredes, as cortinas pesadas em carmim, os candelabros, a gravidade do garçom - único de máscara - em contraste com a bufonaria em redor. E o mais importante: o ponto de vista.
Observem a câmera que assume o lugar de um "entre-eles". É parte da cena, comunga de seus valores e atos e faz com que sejamos membros-café com leite do mesmo mundo de regabofes finíssimos, franqueando acesso ao interdito, num voyeurismo interclasses.
A câmera, no seu passeio ao pé da mesa, se detém momentaneamente em cada um apenas o tempo suficiente para que se saiba que todos ali se irmanam física e socialmente, numa santa ceia VIP.
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