Logo O POVO+
A banalização da fome no país da rachadinha
Foto de Henrique Araújo
clique para exibir bio do colunista

Henrique Araújo é jornalista e mestre em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Articulista e cronista do O POVO, escreve às quartas e sextas-feiras no jornal. Foi editor-chefe de Cultura, editor-adjunto de Cidades e editor-adjunto de Política.

A banalização da fome no país da rachadinha

Tipo Opinião
A imagem da fome no Brasil. Pessoas catam comida do caminhão de lixo (Foto: REPRODUÇÃO)
Foto: REPRODUÇÃO A imagem da fome no Brasil. Pessoas catam comida do caminhão de lixo

A cena é abominável: seis pessoas emborcadas na caçamba de um caminhão do lixo, revirando sobras de um supermercado à procura de enganar a fome, enfiando o que encontram em caixas e baldes plásticos como se estivessem entre gôndolas. Estão na rua, caçando restos de comer numa área de alto poder aquisitivo de Fortaleza, com IDH e PIB elevados, coleta de esgoto, água encanada e segurança. Apenas o IPTU de um daqueles condomínios alimentaria quantas dessas famílias?

Do grupo, a maioria é mulher, mas há também homem e adolescente. De costas, às voltas com o que foi rejeitado, não lhes vemos o rosto. Fazem parte dos quase 30 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza, segundo o Ministério da Cidadania. Um exército de esfomeados que a pandemia e a inépcia governamental fizeram aumentar.

Não são estatísticas, basta sair de casa e dobrar a rua. Estão por toda parte, povoando cruzamentos, fazendo dos corredores financeiros o lugar de morada. Quartos improvisados com lençol e colchão, divisórias encardidas em cômodos imaginários. O retrato se repete na Dom Luís, Desembargador Moreira, Barão de Studart, enfim, qualquer via com grande fluxo na cidade.

Enquanto pediam esmola, eram invisíveis. O registro em vídeo de um motorista de aplicativo, categoria precarizada, escancara o que era evidente, mas se fingia ignorar: cada vez mais pessoas vivem e morrem nesse garimpo da fome.

A cena é incômoda porque essa falta extrema desumaniza, iguala bicho e gente. Alvoroçados, disputando farelos e alimento estragado prestes a ir para o lixão, se desgarram de qualquer condição reconhecível como nossa. Como chegamos aqui? Não existe estado para eles, grande ou pequeno, e qualquer discussão parece inócua. Há necessidades urgentes, não atendidas, diante das quais a pauta política local e nacional se torna ainda mais disparatada.

Menos de um mês atrás, o jornal "Extra" estampou na capa a foto de um grupo fuçando numa montanha de ossos, tentando extrair dali uma nesga de carne com que pudesse sobreviver, quem sabe cozinhar uma sopa, engrossar um caldo, salgar um arroz.

A realidade só arranca o país do estupor quando produz cenas como essa, que explicitam, quase pornograficamente, o fosso da desigualdade, uma miséria crua, sem qualquer filtro metafórico que amenize a situação. E, no entanto, sentimos como que uma impotência em face do que deveria ser motivo para revolta.

O turismo do senador

Presença cada vez menos frequente à medida que a CPI da Covid foi coletando mais provas e indícios dos crimes cometidos pelo pai, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) esteve ontem turistando na comissão.

A sessão, uma das mais tristes nesses cinco meses de trabalho, ouviu familiares de vítimas da doença que matou 600 mil pessoas no Brasil – parte delas evitáveis, caso houvesse vacina e adoção imediata de medidas sanitárias.

Os depoimentos não comoveram o senador investigado por rachadinha, que chamou os presentes de "militantes contra Bolsonaro" e o relato dolorido que expuseram, de "desrespeito" com o Brasil. E, dirigindo-se à audiência, acrescentou: "A CPI não deu um real para você que está passando fome, porque quem te ajudou foi o presidente Bolsonaro".

Fica a pergunta: e quem o ajudou a pagar a mansão de R$ 6 milhões, senador, enquanto a metade do Brasil passa fome e cata osso e lixo para não morrer?

Foto do Henrique Araújo

Política como cenário. Políticos como personagens. Jornalismo como palco. Na minha coluna tudo isso está em movimento. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?